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quarta-feira, setembro 08, 2010


Sinfonia da morte.

Trabalhar no hospital foi muito bom. A gente encontra extremos de todos os níveis. Dor extrema e prazer extremo. As pessoas acham que tais situações não combinam, mas na verdade elas são complementares. Sentimos uma pela ausência da outra.
Você já trepou em uma UTI lotada, com gente mais morta que viva? A sinfonia dos respiradores, medidores, oxigênio, remédios. A vida travando uma luta mitológica contra a morte? Confesso que só de pensar meu pau sobe.
Por uma infelicidade não tive essa oportunidade. Não naquele hospital. Nunca surgiu a oportunidade certa. Namorei com algumas enfermeiras. Aliás fantasia sexual de todo homem decente.
Aquela roupinha branca, fio dental branco, sutiã branco a porra branca. Muito bom, lembra uma pureza conspurcada.
Nesta época eu pegava pedaços de gente para fazer exames. Eu carregava tais pedaços ao laboratório, de forma que estava sempre no Bloco Cirúrgico. Ao lado ficava a Uti.
Lembro de um velho que estava em coma lá. Nunca ninguém o visitava. Muito magro, definhava a cada dia, a morte zombava daquele jogo ganho. Se não fosse por entendimentos mais espirituais, eu diria que deviam desliga-lo.
Em tais ambientes as pessoas criam um ar tão profissional. Sentimentos profissionais. Não se detém na sutileza de uma situação. Não tem tempo pra isso. Abstraem para fugir da dor e resolver problemas.
Chamam de paciente e mantem a distancia técnica. Todos os dias eu ia buscar pedaços humanos. Um açougueiro informal. Era bom. E tinha Joana, a enfermeira com uma bunda premiada. Todos os a adoravam. Por que era gentil, gostosa e não se fazia de difícil.
Falava de putaria tranquilamente. Entre aqueles quase cadáveres. A encoxei algumas vezes. Um dia nos pegamos em um quarto particular do hospital. Ela queria trepar e não interessava muito com quem, gostava da função. Adoro mulheres fáceis de qualquer profissão.
Nessa época eu trabalhava em qualquer coisa, precisava de grana. Quando a coisa ficou realmente feia pro meu lado, tinha pensado até em vender meu sangue, um rin etc... Mas acho que ninguém iria aceitar. Seria politicamente incorreto. Expliquei isso quando seu bolso esta completamente vazio e sem perspectivas.
Ver aquele senhor morrendo, dia a dia sozinho tocou-me de alguma forma. Talvez ele representasse nosso barbarismo. Talvez ele fosse um canalha, que fodeu todos a vida inteira, e agora recebia o premio da indiferença? Ou então ninguém sabia que ele estava ali? Fiquei sabendo depois que os familiares o trouxeram, e desde então apenas pagavam a conta. Ele tinha setenta e oito anos. Não iria julgar a situação, mas agora achava que ele era um filho da puta. O coma dele parecia uma morte. Passei a desejar que ele morresse de uma vez. Era uma estatua viva.
Tais reflexões eram um espelho. O ser humano é mesquinho noventa por cento da sua vida. Que interessava se o velho não prestava? Que tenha fodido a tudo e a todos. É isso que devemos guardar dentro de nós? Ele fez o que fez. E nós o que faremos? Justificaremos nossas falhas, pelas falhas de tudo que nos cerca. Sem grandeza.
Sempre perguntava a Joana como estava o velho:
-Na mesma, acho que ele esta fazendo vestibular para ir para o céu ou inferno.
-Sozinho desse jeito, acho que nem o diabo o quer lá.
Riamos. Mas no fundo eu achava uma merda morrer assim. Esquecido, abandonado, indiferente. Pensava: se um dia isso acontecer comigo, e não tiver volta, tomara que desliguem a merda toda, puxem os aparelhos da tomada. Foda-se.
Naquele dia voltei a Uti para pegar um estomago que havia sido retirado de um cara com câncer. Você já viu um estomago doente aberto? Não é a coisa mais linda. Merda e podridão que não se imagina que aquilo saiu de um ser humano.
O velho aquele dia tinha dado sinais de vida. Porem quando eu cheguei, eles estavam tentando ressuscitá-lo, mas não deu. Joana diz:
-Ele abriu os olhos de-repente, disse algo que ninguém entendeu e apagou.
-Sei Joana. É uma lâmpada quando esta prestes a queimar, fica mais forte e depois já era.
-Isso, o velho teve um tremor e tudo ficou silencioso.
-Puta que pariu, que merda morrer assim.

Luis Fabiano.

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