Casal de três
Terríveis são algumas verdades, a força reveladora de nossas impressões mais impossíveis. Não foram poucas vezes que me deparei com isso. O total desconhecimento de mim mesmo, o abismo orbital, de uma probabilidade algo inacreditável, que a vida terminou por me conduzir.
Eu feliz diabo, festejando o caos, rindo considerando o absurdo normal. Talvez o pior de meus defeitos, olhar com perfeita naturalidade o bizarro, achar fantástica a corrupção, vislumbrar no espelho da alma, devaneios e paixões. Diabo feliz... inferno saboroso, as marcas de um chão arenoso.
Longe de mim ser vitima. Sou apenas estupido mesmo, o ignorante que se lança no abismo ainda que se choque com asteroides, meteoros e cometas que me destruam uma vez mais... não foram poucas...
Quando comecei a namorar Manuela, parecia uma coisa normal. A exceção que o seu ex-marido era uma espécie de grude. Eles tinham uma boa relação, eu nunca senti ciúmes em minha vida, coisa alia que me causou muitos problemas com as últimas setenta e três mulheres... uma falha em meu sistema emocional, algo impreciso que a mim não causa problemas... mas as mulheres... eternamente inseguras, querem uma prova inolvidável das emoções profundas... o brutal nelas também fala, querem dinossauros mortos, querem o oponente no chão, querem uma certeza feita ferro, concreto... nunca pude oferecer isso.
Mas Manuela não esquentava com isso, ainda bem.
Nosso namoro passou a ser frequentado quase sempre pelo ex-marido. Explico: ele vinha visitar a filha, ás vezes saia, ás vezes não... então ficávamos todos na sala, rindo, brincando com a criança.
Manuela era uma mulher bonita, altura mediana, longos cabelos negros, seios protuberantes, tinha todos os dentes e sua boa era a sombra do pecado peniano... lábios de mel capaz de fazerem santos ejacularem nas estrelas.
Tudo ia muito normal, tínhamos uma boa relação, a historia do ex-marido não me importunava. Fui notando que a distancia entre eles começava a estreitar-se, olhavam-se nos olhos, sorriam com cumplicidade. No final das contas, o cara era bacana, não era uma má pessoa. Eles haviam se separado pelo ciúme dele, mas agora ao menos diante de mim, parecia um ser normal.
Temo gente normal... esses são capazes de fazer qualquer coisa improvável. Animais que improvisam, o cometa que perde o rumo e nos acerta na mais improvável possibilidade. Prefiro os viciosos, os violentos, rancorosos... esses sabemos o que são capazes.
Essa normalidade mórbida, de minha parte passaria para o próximo estágio. Então Manuela, em uma noite de álcool, propõe a mim o que parecia absurdo.
Meu sentimento por Manuela, não sei bem definir, em algum momento pensei ser amor... talvez fosse, tal fronteira difusa também sempre foi dos meus piores defeitos. Como saber o que é oque ?
-Fabiano... tenho pensado em algo ultimamente... mas sinceramente não sei o que tu vais achar...
-É, eu nunca sei o que vou achar de nada... o agrado é uma chama vacilante...
-Estes dias eu estava falando com Pedro... sabe... eu gosto dele... sabes... eu gosto de ti também... e...
-Sei...gostar é uma coisa boa...
-Pois é... e ai eu falei pra ele isso... que gosto de ti... mas que gostava dele também...
-Bacana...
Tomei mais um gole do rum sem gelo....
-Pois é... eu queria ficar com os dois...sabe... gosto de vocês... muito...
-Entendo... entendo...
-Que tu achas?
-Olha por mim tudo bem... apenas vamos disciplinar a coisa ok? Não quero transar com ele presente... de preferencia...
-Claro, claro Fabiano... já pensei nisso... ele ficará no quarto de hospedes...e tu no meu quarto...ok...
-Certo... nada de misturar estações... eu não sou tão moderno assim ok...?
-Sim tudo bem.
O que sucedeu foi uma das situações mais estranhas que vivi na minha vida. Parecíamos três irmãos que trepavam felizes... os três porquinhos em suas casas de devassidão. Realmente isso não causou problemas graves. Ela dormia dia sim e dia não comigo, eu podia ouvir os gemidos dela trepando com o ex-marido no quarto de hóspedes, e pareciam felizes.
Meus familiares acharam a coisa mais absurda do mundo. Lembro que teve um dia que saímos os três juntos, de mãos dadas... ela no meio e a direita eu... e a esquerda Pedro. A criança creio eu, que não devia entender nada.
Aquilo se arrastou por meses, todos parecíamos felizes. Mas era visível que Manuela tinha uma afeição maior pelo marido, eles tinham um filho juntos... um vinculo a mais. A beleza que divagava em uma liberdade anunciada, também o reconhecimento que as coisas mudam... achei que era de mudar.
Manuela começou a dormir mais com o marido, as regras que se adulteravam, era a nota musical do fim... eu me sentia tranquilo, alias tento manter relacionamentos tranquilos, algo que possa me dar paz... uma paz carinhosa, eflúvio das vibrações celestes deitando-se em nossa carne, conduzindo ao porto seguro, ainda que a tempestade esteja a nossa volta.
Numa tarde de novembro chamei Manuela para uma conversa:
-Manu... eu preciso dizer alguma coisa?
-Que foi Fabiano?
-Você sabe... todos mudamos não?
O olhar dela turvou-se com uma lagrima.
-Sim...todos... tu vais embora?
-Creio que sim Manu... vocês tem uma boa vida aqui... vejo isso...e acho legal...acho que devem cultivar isso mais possível...
-Mas se tu fores embora... e o Pedro mudar?
-Manu, não posso ser um prego na parede para segurar a relação... acho que você estão bem grandinhos... afinal todos temos mais de trinta...
Ela riu e a lagrima caiu.
Que coisa mais estranha os sentimentos... o improvável pode nos causar uma dor, e a trama que nos vincula ao outro é feita de cuspe divino... algo pastoso e lindo. Talvez fossemos a divina trindade...
Queria terminar aquilo sem drama. Detesto drama. Lágrimas intermináveis, objetos atirados, facas voando... cuecas molhada no para-brisa. Não.
E assim foi, Manuela ficou chorando em silencio... um choro suave, uma liberdade dolorosa capaz de nos mover e fazer sentir. Juntei minhas coisas e nunca mais voltei lá.
Ela me escreve as vezes e-mail, e sei que estão felizes... porra, no final não é isso que importa?
Luís Fabiano.
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