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quarta-feira, março 23, 2011


Porta entreaberta


Não foram poucas vezes que vi a morte de perto. Quando se trabalha em hospital, é preciso acostumar-se com isso. Sim, existem os nascimentos também, a maternidade costuma ser um lugar mais alto astral do hospital. A natureza é realmente encantadora, coloca o nascimento tão perto da morte, talvez como um a sugestão.

Por vezes é preciso saber morrer para algumas coisas, para que se possa nascer para outras. Morremos sempre, deixando para trás pessoas, emoções que não podem eternizar, situações de nossa vida, que embora nosso apego visceral, se tornam insustentáveis. Agarramo-nos a isto como náufragos, fragmentos de uma embarcação que afundou ou esta afundando, levando-nos para fundo junto também. Não. É preciso deixar partir, deixar a vida fazer seu ciclo. Precisamos alçar novos caminhos, um pouco mais libertos, assim acredito.

Era um bom emprego, eu era o autentico faz tudo. Esse é um cargo de muita honra, pois eu tinha liberdade de circular em todos os locais, entrava em qualquer canto. Tornei-me amigo de muitas pessoas. Gostava das enfermeiras, todas elas. Gordas, magras, negras, brancas, casadas, solteiras, noivas, comportadas ou as mais vagabundas. Para mim todas eram lindas.

Mas este sentir era eventualmente quebrado pela morte. Depois de ver tantas pessoas morrerem, todos dias, você não preocupar-se com a morte, e da até pra debochar.

Quando morremos em um hospital, sempre estamos pelados, aqueles roupas brancas de frente única é a proteção da nudez. As via bons cadáveres sem roupa.

Confesso que aqueles corpos assim não pareciam humanos, poderiam ser fantoches de carne cujo ventríloquo não esta mais ali, o titereiro ausente. Alguns corpos eram bonitos outros erodidos pelo tempo. Achei que quando visse um corpo feminino, sentira tesão pela morta. Mas não aconteceu, não havia reverencia também, era apenas sem graça.

Tais fantasias de morte vieram a acordar em mim mais tarde. Mas nunca violei um corpo morto. Pedia para algumas namoradas se fazerem de mortas, enquanto eu a beija e penetrava, é um bom brinquedo.

Vinha passando pelo corredor e vi porta entreaberta, lá dentro, uma senhora agonizava, senti a presença a morte ali. Fiquei na entrada da porta observando-a. Estava sozinha, eu creio que morrer assim não deve ser fácil, ninguém para segurar a mão ou dizer adeus, partir desta merda de mundo, enxotado como um cão de rua.

Entrei, ela estava de olhos fechados e parecia não dizer coisa com coisa. Ela não era bonita, parecia algo deformada, o pescoço torto, a idade havia lhe pesado tudo, dizia em voz baixa quase como um sopro:

-Eu...eu...to indo...eu vou...

Parecia mergulhada em um sonho ou pesadelo. Fiquei ali a espera do suspiro final. Uma enfermeira passa e chega onde estou:

-Ela tá no final e ninguém parece se importar.
-E a família?
-Foram avisados, mas como se não fossem.
-Ela disse alguma coisa diferente nestes dias?
-Sim, conversei com ela, ela queria se casar, disse que o noivo iria chegar. Mas não existe noivo algum.

Fiquei calado, deixando-me alçar caminhos, talvez o noivo realmente chegasse, de uma maneira que não entendemos bem, que transcende obviedades de uma presença literal. Nossas emoções ainda são um mistério, repleto de vãos obscuros, e onde nossas carências agonizam, surge algo.

A enfermeira me convida a entrar no quarto. Aproximo-me da moribunda, ela repetia as mesmas coisas caóticas. A enfermeira diz:

-Segura a mão dela, talvez faça bem...

Segurei por um instante, aquela mão fria e descarnada. A voz dela silencia, respira com suavidade, não morre, mas parece dormir. Nos retiramos do quarto. Fiquei com um sentimento em mim, da finitude que está em nós. Às vezes é mais fácil não se importar.



Luís Fabiano.

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