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domingo, outubro 24, 2010

Gestando tempestades


Ela tinha certeza que estava grávida. Aquela gravidez era feita de angustia que em seu ventre se formava. Aquilo que gerava dentro si, jamais seria sua felicidade. Não tinha pensando assim. Uma criança no mundo, era algo planejado, como os aparentes normais seres humanos fazem. Mas em sua vida, nada tinha sido assim. Um planejamento em uma folha branca, os passos seguintes . Não, nunca foi assim.
Marisa tentou ser normal. Tentamos ser como todos querem ser, com direito a final feliz e tudo. Nunca tive muitos sentimentos, e creio que venho perdendo os poucos que sobraram, minha sensibilidade desaparecendo dia após dia.
Então ela veio com esse assunto novo. Éramos namorados. Também nesta época eu tinha esperanças de muitas coisas. Hoje não mais. Ao chegar a sala onde estava sentada, o semblante distorcido de pura agonia silenciosa. Mesmo ela não falando nada, entendi.
As vezes acho uma merda perceber as pessoas por dentro. Sempre fui assim. Sei sempre tudo que se passa com elas, e mesmo que tentem esconder de mim, sempre vejo ou sinto. Então inopino pergunto:
-Marisa, tá tudo bem?
-Sim Fabiano, to apenas cansada, sempre cansada...
Fiquei parado olhando-a. Não tenho o perfil de forçar ninguém a nada. Nada de verdades forçadas. Se era isso que queria dizer agora eu respeitaria. O silencio parecia uma nevoa de chumbo. Sentei-me no sofá, com ela sentindo o turbilhão em seu coração.
Atalhei:
-Marisa, algo há, eu apenas estou aqui, só isso que quero dizer. Seja o que for estou aqui.
-Porque minha vida tudo dá errado Fabiano? Por que isso? Porque planejo e nada funciona, nada... eu desejo coisas bonitas e tudo se converte em rabisco grosseiro...que merda isso...
Como um trovão em uma noite negra, ela solta suas lágrimas. Havia raiva, indignação e outras tantas coisas que apenas uma lágrima concentra. Poderia dar-lhe milhares de explicações filosóficas. Sou bom de filosofia. Mas precisa de algo mais palpável. Algo que permitisse segurar seu coração entre minhas mãos, e faze-lo acalmar-se. Mas como?
Nestas horas você se sente uma merda de ser humano. Eu pegaria sua dor e cravaria diretamente em mim. Não sou muito assim, mas faria, se fosse possível.
A abracei. E fiquei afagando como se afaga um pequeno animal ferido, para que ele fique silencioso meio adormecido. Eu a entendia bem, como minha vida também era um caos sem fim.
Tudo que ela quis que funcionasse, nada funcionou. Vira seus planos evaporando em um dia causticante. Nem emprego que queria, nem uma relação que valesse a pena, familiares que estavam se lixando para ela. Amigos que se foram quando a merda entrava a cântaros na sua vida. Ela foi ficando acomodada, como uma barata. Mas hoje não.
Não sei como ela me considerava em meio aquilo. Namorávamos, mas nada era sério demais. Tenho dificuldade de levar as pessoas a sério. Passo a considera-las depois de muito tempo, refiro-me a anos de certa convivência. Antes é complexo.
Gostávamos de fazer sexo um com outro. Sexo cheio de carinho e tesão. Para mim bastava. Ela não queria estar sozinha, preferia sua solidão com a minha solidão. Então acho que nossa relação era uma boa troca de favores, como a maioria das coisas que me cercam. Eu dou algo e as vezes recebo algo, e tudo fica tranquilo. Não preciso mais que isso.
Depois que chorou, decidiu falar. Disse-me a verdade:
-Fabiano acho que estou grávida...
Nesta época eu ainda pensava em ter filhos com alguém. Como disse depositava minhas esperanças em crianças. Aquela idéia me acalentou. Relaxei e disse a ela:
-Marisa que bom, vamos ser pais...e tu chorando deste jeito ?Não é pra chorar...porra, vamos curtir, comemorar vai ser bacana, é uma criança porra...
-Mas não era assim que eu queria...nem queria que tu fosse o pai de nada, queria outra pessoa, alguém que amasse efetivamente, depois iriamos noivar, construir um lar de verdade, depois nos casaríamos na igreja e ai sim, engravidaria, é assim que tem que ser...é assim...
Comecei a rir. Que porra era aquela ? Um script de contos de fadas? Era muito bonito sem duvida, porem pouco real. Ao menos para mim. Minha vida sempre foi algo errante. E praticamente tudo deu errado. Já não esquentava com tais detalhes. E com o tempo fui dando foda-se a tudo. Posso confessar a vocês que se não fosse por detalhes que me permitem ter uma vida boa e sem grandes preocupações. Um emprego e uma casa, se não tivesse nada disso, tenho certeza absoluta que seria um destes andarilhos da rua. Sujo e vagando procurando a morte até desaparecer como tantos que somem e ninguém nota. No fundo somos assim, bem desimportantes.
-Marisa, você tem certeza?
-Tenho, sinto algo aqui e estou tendo enjoos e essas coisas de mulher gravida...
-E um exame ? Sem provas fica difícil...podemos estar sendo os dois ridículos aqui eu estou acostumado a ser...
O cérebro não distingue entre um pensamento real e uma lembrança. São as mesmas regiões que se acendem. E por vezes o ser humano é muito imbecil.
Nossa conversa terminou ali. Dias depois ela fez um exame. E era toda sorrisos, um sorriso oco. Estava feliz justamente por não estar.
Seus últimos planos estavam intactos. Poderá parecer estranho, olhando aquele papel escrito negativo, mesmo não sendo um plano meu, senti uma ponta de tristeza. O ser humano é muito estranho. Mas não foi só. A pá de cal, foi quando Marisa disse:
-Bom Fabiano, acho melhor terminarmos ok? Tu não me leva a sério, e nem eu, apenas não queria estar só, quase deu tudo errado. Então acho melhor buscarmos nossos destinos em separado. Tá bom?
Fiquei em silencio. Sentindo como se tivesse sido atirado de um prédio. Me deixei cair. Ali mais um pouco de minhas esperanças morreram.
-Tudo bem – foi tudo que consegui dizer.
Fui embora. Depois em casa, lambendo feridas e sentindo-me melhor. Lembrei do semblante dela algo feliz por não estar gravida. E de mim, que por um breve instante me senti pai. Um pedaço de ilusão eu sei. E mesmo tudo tão errado, aquele breve aceno de algo que mudaria minha vida me fez bem, foi bom sentir, muito bom.

Luís Fabiano.
Leve e quase insustentável.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei! muito bem escrito, emocionante, conseguisse traduzir aqui a dor e decepções do ser humano, das pessoas que encontramos pela vida e que nem sempre se comportam do jeito que se espera, isso quando se espera, conseguisse e bem nos relatar aqui com sensibilidade e compaixão. Verídico ou não, achei um texto cheio de expressão. Na maioria das vezes a vida não segue um caminho coerente, pegamos atalhos ou ela se distancia de nós, lamentei o fim desse teu” relacionamento” e a morte dia à dia das tuas emoções como quando escreves “Eu pegaria sua dor e cravaria diretamente em mim. Não sou muito assim, mas faria, se fosse possível.A abracei. E fiquei afagando como se afaga um pequeno animal ferido, para que ele fique silencioso meio adormecido” é isso, as vezes só o que se quer é alguém que possa trocar de lugar conosco, por um breve instante e que com essa troca possa nos enxergar por dentro, lá onde nossos mais profundos segredos e dores está escondido e a partir daí possa lidar melhor com nossas emoções, se o que vc sentia por ela não era amor creio que foi algo bem perto disso, parabéns!!!.