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terça-feira, maio 25, 2010


Entre tripas cheias de merda,
olhos repletos de lágrimas.

As pessoas não gostam nem de falar em doenças. Não as culpo, ninguém gosta de sofrer ou de ver sofrer. Mas quando se trabalha em um hospital, a dor, o sofrimento fazem parte do metier, e não se pode ficar sofrendo por todos que morrem, por todos que sofrem, pela agonia alheia e as lagrimas sem fim. Não dá, por que isso atrapalharia a profissão.
Quando trabalhei em um hospital vi muitas coisas, a maioria delas infelizmente ruins.Poderia fazer um discurso politicamente correto, que as pessoas conseguem superar a luta pela vida, que a esperança ajuda, que Deus ajuda,que o amor redime, que a dor salva,que as pessoas renascem pela doença.
Tudo isso é muito bonito, porem pouco verdadeiro. Estar doente é uma merda. Quando se está doente de forma grave, se está literalmente com o cú na mão. Alguns até se despedem da vida, prontos para encontrarem o criador?Ou o outro...
Este período que trabalhei lá, não foi por assim dizer o melhor período de minha vida.Meu primeiro casamento agonizava nos estertores de um final repleto de tortura e drama. Aquilo foi o inicio de uma grande cagada. Nesta época eu era muito inocente, acho que senti alguma coisa semelhante a amor, até hoje não sei o que foi. Não dou muita atenção a sentimentos, vivo por impulso, uns duram um pouco, outros duram mais. Minha paciência naqueles dias estava chegando ao fim, então que fazer?
O trabalho era um conforto, sempre gostei de trabalhar e fazia qualquer coisa, não tinha e não tenho ambição. Então entrei no hospital na condição de faz tudo em um laboratório de analises. É lógico que a parte mais tenebrosa da coisa era comigo. Eu ia ao bloco cirúrgico buscar pedaços de gente, gente doente, era muito variado: eram estômagos, rins, pernas amputadas, fígados e até uma boceta uma vez eu busquei. Uma boceta cancerosa, até lembro do aspecto,era bem grande com pelos e tudo,mas estava muito estragada, senti pena da pobre bocetona. Quando chegava no laboratório, aquilo tudo tinha que ser fatiado para proceder a exames cito-patológico. Era um bom trabalho, mas como disse, raramente as noticias eram boas.
O tempo passa e você se acostuma a ver morrer, e passa a relaxar diante disso. Não tem o que fazer,morreremos todos querendo ou não.
Fiz amizades com colegas de outros setores do hospital, isso me dava oportunidade de entrar em qualquer lugar, gostava de ir as salas de recuperação após cirurgia. Aquele silencio anestésico, tinha algo misterioso, gostava de vê-los acordar aos poucos, se dando conta do que aconteceu,as primeiras dores.Ficava parado ali uns cinco minutos observando aquelas camas silenciosas,apenas respiração, um dos auxiliares me questiona:
-Mas que tu sente quando vê este pessoal anestesiado ai? Ta maluco...
-Não sei, parecem mortos que respiram, então vão acordando lentamente, como se a vida tivesse entrando novamente neles, não sei, acho bonito.
-Tu é muito idiota mesmo - saiam rindo de mim.
Foi neste local que conheci Leticia. Após uma grande cirurgia, que lhe extirpou três quartas partes do estomago, por um câncer que se alastrava rápido demais. Eu estava lá parado quando trouxeram ela, não parecia bem. O corpo magro e um rosto que parecia um anjo. Era uma mulher jovem, com vinte e três anos, já enfrentava coisas terríveis, para viver ou sobreviver.
O rosto dela era lindo, uma morena muito branca, cabelos negros. Quase não respirava. Me contaram que o caso dela era grave, que embora se tivessem fazendo de tudo, todos sabiam que ela iria morrer, cedo. Era uma ironia profunda, tão linda e tão doente.
Por algum motivo que preferi não explorar mais, fiquei tocado. Não queria saber mais daquela historia fadada a um fim sem graça.
Ela acordou algumas horas depois, e foi levada para UTI,houveram complicações e ela entrou em coma. Curiosamente ainda sentia vontade de vê-la.Não era amor, mas uma simpatia gratuita, destas que algumas pessoas que nem conhecemos bem, nos cativa.Não sou dado a simpatias, gosto mais de antipatias,é mais saudável e mantém todos longe.
Passei a frequentar a UTI, apenas para olha-la, sem falar, sem tocar, sem nada mais. Não queria pensar naquele caso. Eu a via dia a dia, ficando cada vez mais cadavérica, eram peles sobre ossos, ainda sim a achava linda.
Morria como uma lâmpada que se apaga lentamente.Podia ver pelo lençol alvo e fino, os seios murchos e bicudos, um corpo que poderia ser tão lindo quanto ela,ia se acabando.
Pensei comigo: ainda que ela não tivesse corpo algum, que virasse um esqueleto, nada mudaria aquilo que sentia, algo carinhoso,destes sentimentos que gosto de não explicar porque.
Um dia voltei a UTI, no horário que ia sempre, e a única coisa que vi, foi um leito vazio. Era como se tivesse desaparecido, talvez morrer seja mesmo assim.

Luís Fabiano.
Respira agora,depois eu não sei,quem sabe?

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