Que demônios você carrega aí ?
Jane sempre teve uma vida fudida. Era bonita mas a existência
não facilitou nada por isso. Quando penso nesta historia, e tento buscar a
parte mais branda do humano, mas confesso que é difícil. Difícil aliviar a mão,
quando tudo aponta adagas afiadas, quando golpes do acaso expõem feridas
violentas, que de alguma forma todos carregamos. Meus olhos procuram asas... Mas
não encontram. Estou cego? A caricia encontra a sua contra partida.
Quando conheci Jane era faxineira, dava um duro do
caralho limpando, arrumando e fazendo o melhor nas casas que trabalhava. Nesta
época flertamos um pouco. Mas por um período longo tudo ficou no terreno da
imaginação. Creio que a coisa platônica salva a vida.
Ela não tinha tempo, eu estava casado, mas minha esposa
da época era uma cadela insuportável, extremamente chata, querendo por ordem em
meu caos pessoal. Tenho uma desconexão com toda ordem. Meu casamento vinha se
arrastando, e de alguma forma eu procuro ajudar sempre, para que piore.
Eu trabalhava muito, chegava tarde... Muitas noites eu
nem vinha pra casa, ficava na rua até as cinco da manhã... E para as poucas
pessoas que me conhecem, sabem que basta apertar o cerco em cima de mim, para
que justamente eu escape pra longe. Me deixe livre, as coisas podem transcorrer
normais e suaves.
Mas eu não estava mais ligando pra ela... Foda-se a vida,
fizesse o que fizesse não faria a menor diferença. Tudo era uma questão de
tempo. As vezes até incentivava ela a dar pro vizinho. Mas como as verdades que
digo, quase ninguém acredita, acham que não é possível que eu seja ou fale
assim. Tolos. O tempo te ensina a falar, as piores coisas para as pessoas, de
uma forma tranquila.
Jane neste período era delicada, tinha um cheiro forte de
suor, não chegava a ser um fedor, suor limpo, de um dia de trabalho cansativo. Era
perfume pra mim. Conversávamos muito, mas ela não cedia, não queria nada além
de papo furado.
Fiquei na minha. Nunca de atenção demais pra uma mulher.
Segui tocando minha vida de trabalho e casamento falido. Neste período eu também
não bebia muito, era quase normal.
Tinha pouquíssima paciência. Em dez anos as
coisas mudaram. Creio que piorei na opinião de muitos, mas eu me sinto muito
melhor hoje. As coisas com Jane aparentemente haviam dado em nada.
Um dia, ela me chama com um sorriso lindo e olhos que
brilhavam. Era todo um sinal que a mãe natureza fazia. Fiz o convite e saímos. Realmente
como pessoa, Jane era interessantíssima e fazia um sexo tranquilo, com beijos
longos e molhados, sem sofreguidão e loucura, havia uma ternura branda naquilo.
Não era exatamente o meu estilo, mas naquela noite gostei daquilo. Ela tinha um
cheiro marcante na pele toda, e o gosto agridoce na xoxota peluda, uma mistura
de urina, sucos vaginais e suor... Uma combinação perfeita, não existe perfume
melhor.
Nosso envolvimento foi breve, e mantivemos essa amizade
sexual. Coisa que era bom para ambos. Fodas e sorrisos leves. Quem precisa de
mais? Eu não. Mas ela precisava, isso parece uma sina comigo. As mulheres
sempre querem aprofundar as coisas, tornar tudo um casamentinho. Sempre querem
me transformar em “maridinho”. Isso me causa nojo. Não sirvo pra essa profissão:
marido.
Ao perceber isso, naturalmente fui me afastando, como um
vento de outono... Vendo as folhas secar de longe e fim. Foi o fim também do
meu casamento numero quatro. E sentia-me em paz apesar de tanta pressão emocional.
Anestesiado por tanta merda.
Merdas aconteceram depois disso. Não falei mais com Jane.
Soube que ela acabou engravidando de um cara quer era guarda municipal. Não era
uma relação de amor, mas era o cara domesticado que ela precisava. Felicidade
pode ser isso também. Desejei sorte e um foda-se a vida mais uma vez.
Tive um período mais ou menos calmo. Os envolvimentos se
sucediam rapidamente, muitas mulheres ao mesmo tempo. Peguei este vicio neste período.
Muito sexo, e as bebidas começaram a chegar mais incisivamente. A vida ganhou
outro significado, as pessoas também. Minha capacidade de entender os seres
humanos aumentou exponencialmente, e aprender a se tornar indiferente também. Passei
a compreender que os seres humanos, podem um dia te fuder, mesmo sem querer. E
isso é natural e esperado.
Que ao travar contato com alguém você deve se
lembrar disso sempre, e confiar nesta pessoa absolutamente, sabendo que um dia
ou menos um dia alguma merda vai dar. Primeiro porque raríssimas pessoas se
conhecem internamente, o que torna todos os humanos um perigo. Então quando
menos se espera... Boom!
A partir deste momento as coisas ficaram mais tranquilas
em mim. Tornei-me o saco de apanhar, e isso não me importunava. Quanto mais
golpes, mais forte ficava. Uma armadura filosófica, que me tornava vencedor
mesmo quando estava na pior. Ótimo.
Então dias atrás, tornei a encontrar com Jane. Infelizmente.
Ela continua muito bonita. Negra alta, seios de silicone, pernas esguias e
cabelo bem arrumado, unhas perfeitas. Mas não era mais a pessoa que conheci.
Não é mais faxineira também. Mudou de emprego, caiu pra cima, e agora é
secretária.
-Oi Jane... Tudo bom, quanto tempo, né?
-É verdade... Ainda bem né? Passou aquele tempo todo...
-É, eram dias difíceis... Mas tu estas muito bem...
-Melhor não Fabiano. Eu to ótima... Chega de miséria e
pobreza.
-Puxa que bom. Que tu fazes agora?
-Secretaria administrativa. Quase a “chefa” e te digo,
não dou mole pra faxineiras não... Faxineira tem que se ferrar mesmo...
-Como é?
-Isso mesmo... As “coisa” mudaram, gente que tá abaixo de
mim, tem que fazer tudo muito direitinho, se não já mando pro olho da rua... Inclusive
lá em casa é assim.
Houve um silencio que mastigava víboras, em que eu
assimilava aquela merda toda. Tentava formular algo que a ofendesse, com
discrição. Jane me parecia agora tão filho da puta, naquela conversa arrogante,
aquele vestido justo que me causava engulho. Puta desgraçada.
-Então estas feliz ?
-Muito, bem casada, boa casa, bom emprego e tô muito
bem... que mais é preciso? Nada.(risos)
-Que houve com a tua delicadeza, Jane?
-Hã ? Que pergunta é essa Fabiano? Para com isso.
-Sim, tu eras uma mulher linda, educada e delicada. Hoje
não vejo mais isso...
-Eu era tonta e boba... Isso sim. Hoje eu sou esperta e
ligada “tendeu” cara!
-OK, “tendi” baby. Tu me fazes um favor Jane?
-Claro Fabiano... Embora tu não mereças... (risos vazios)
-Obrigado. É um pedido simples. Na próxima vez que tu me
veres, não precisa me cumprimentar ou mesmo falar comigo, não precisa nem
perceber que eu existo, tá bom? Pode ser?Me quebra essa? Thank´s.
Ela fez uma cara indignada, um rosto perturbado pelo
inesperado. Gostei do que vi. Uma poesia maldita reverberando um ego fervendo
em um caldeirão. Ela não falou mais nada, deu meia volta rapidamente e saiu
pisando o chão com salto alto, como se tivesse amassando culhões da humanidade.
Fiquei parado ali. Lembrei-me de tantos por aí, que
esperam anos para exporem seus demônios, e outros tantos que aguardam a
oportunidade pra isso. É tudo é uma questão de tempo?
Senti-me um anjo pecador, porem honesto. Digam-me como
salvar um anjo caído com asas borradas de merda? Respirei profundamente,
busquei a paz possível em um calçadão atolado de gente inquieta e políticos barulhentos.
Não havia o que fazer, as coisas são como são.
Luís Fabiano