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sexta-feira, março 29, 2013



O coelho sem endereço

Não guarde muitas memórias, isso pode ser uma dinamite acesa dentro de você. Tudo bem... Existem as boas memórias, mas ainda sim não abuse delas... Porque você poderá ficar preso lá atrás, como uma fotografia, que na verdade é apenas um piscar de olhos do tempo.

Tenho um lema comigo: nunca olhe para trás... Nunca mesmo.  Se fiz uma cagada... Estou consciente e não olho mais... Se foi bacana... Tudo bem, também não olho.

As poucas pessoas que convivem comigo, acham estranho isso. Não possuo um único cartão de namorada, aniversários ou natal. Eu os recebo e rasgo quase imediatamente. Li a mensagem... Tá na memoria, já era... Essa é a vida.

Sorri pra mim mesmo diante destes pensamentos. As ruas do porto desertas em um feriado, então esperamos Jesus ressuscitar? Ok.  Não espero nada. A minha volta enquanto olho o São Gonçalo calmo, catadores de lixo, revirando latões, crianças sujas que talvez desconheçam o cara que vai ressuscitar no domingo, é?

Claro, fiquei na minha, eu, minha agenda e a caneta. Lamentei não estar com a câmera, para registrar aquilo. Cena deprimente, sobrevivente, guerra sem armas, agentes biológicos em jogo... Fome, dinheiro.

A mulher parecia ser a mãe das crianças, jovem, não mais que vinte três anos, desgastada, cansada talvez... Olhava o latão atenta, por vezes olhava pra mim. Realmente eu sou um filho da puta... 
Olhei para ela, e meus nobres pensamentos se foram pra puta que pariu, vindos da injustiça social, se foram. A roupa dela muito puída, sem sutiã podia-se ver os bicos rijos, do frio possivelmente... Mas o frio por vezes pode incendiar a minha alma. 

Desviei o olhar. O maldito cheiro merda do latão me acertou o nariz. Pensei: eis o cheiro da vida. Fiquei na minha, o por do sol iria dar o seu show... A mulher vez em quando me olhava. Agora as crianças brincavam com o lixo... Atirando uma panqueca azeda uma a outra, a panqueca de destruindo com o impacto, elas sorriem como somente as crianças podem sorrir. Ironia fantástica, o azedo abre sorrisos, o imprestável torna-se ponte.

Permaneci em silencio, lamentei o que fere o olhar... Mas ainda sim, o sol parecia não se importar com nada disso. Olhei a mulher novamente... Agora ela me fixou.
Sorri pra ela, e como uma concessão silenciosa, ela veio até mim. Meus sentimentos se misturam, existe uma linha tênue que separa o hediondo, de mim:

-O senhor me consegue um real?
-Sim...

Abri a carteira, achei uma nota de dois reais, dei a ela, perguntei:

-São teus filhos?
-Sim... São... um é do meu corpo, e outro eu peguei pra criar...
-Sério? E tu consegues isso?
-Agente luta né... Se vira e vamos indo...
-Desculpa perguntar... Mas tu não tens condições de criar um, porque pegou o outro?
-Não sei não senhor... A mãe dele sumiu... Deixou a criança pra morrer sozinha... A gente não pode deixar as “pessoa” morre né?
Aquilo havia me capturado.
-Me conta isso direito, tu?
-Olga... sou Olga.
-Nome forte Olga. A mãe abandou a criança?
-Sim... Era louca, chapada e “crackera”... Nossa, não sei como Deus permitiu essa criança nasce... ela vivia bêbada...e louca...até porrada na barriga levou...e a criança nasceu perfeita.
Por detrás de cada ser humano, existem milhares de historias... Boas, ruins... historias, qualquer um é absolutamente comum. 

Gosto disso, gosto da vida, seja ela como for. Aquela historia me machucava, Olga tentava dizer como se não fosse de grande relevância.

-Sei... e ai tu pegou...
-Sim... Mas quando peguei a criança eu senti algo... Estranho sabe... Olhei para ele... ele parou de chorar... Eu o senti, como se ele tivesse saído de mim... Coisa que não sei explicar... Até hoje... mas ele é meu, meu filho.

Seus olhos haviam se enchido de lagrimas, falando daquele jeito. Disfarcei as minhas. E meu pensamento mergulhou em um tempo atrás, que fui um pai de aluguel. Tentei ser bom pai... É o que eu digo... Lembranças são laminas afiadas.

Fiquei olhando pra ela. E fiz uma pergunta que eu sabia a resposta... Mas...

-E no domingo como vai ser?

Apontei para as crianças que ainda riam, a panqueca não existia mais...

-Não sei... To tentando juntar um dinheiro para comprar dois bombons... Um pra cada... Mas a gente precisa comer... né...então...

Lembrei que minha pascoa na infância, sempre foi cheia de bombons... e provavelmente a sua também que ora esta me lendo... Dois bombons? Porra Deus.

-Eles acreditam no coelhinho da pascoa?
-Claro que sim... não se rouba a fantasia de ninguém...
-Tá, mas se o coelho não aparecer... Que tu vai dizer?
-Vou dizer o que coelho se perdeu do nosso endereço... Que ele vai procurar direitinho no mapa e depois vem... atrasado mas vem...
-Ai tu ganhas tempo, é isso?
-Sim... ai eu consigo os dois bombons...depois...

Você sabe quando alguém esta dizendo a verdade... Ela era intensa, tinha cheiro intenso, e falava me olhando nos olhos... Não queria seguir mais o assunto. As crianças chamavam Olga... E ela foi embora, levando as crianças pela mão, e uns sacos de lixo também.

O sol se punha lentamente, raios que fogem acendendo estrelas, estrelas que vagam entre as valetas e lixo, testemunhas ocultas de historias não vistas. Eu também fui embora.

Luís Fabiano.



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