Pesquisar este blog

quinta-feira, dezembro 27, 2012



Último Olhar

A vida me transcorre sem apuros. Como o próprio sangue fluindo em minhas veias lentamente, mesclando-se entre minha sanidade e o álcool. Assim me deixo levar. Demora-se muito tempo para aprender isso. Teoricamente todos podemos aprender. O grande porem é saber fazer calar as vozes incontidas, que como cães furiosos no peito, ficam dizendo pra você: faça isso, faça aquilo, seja alguém, ataque, tenha importância... não perca tempo, não perca, com pressa vai...

Como uma meditação diária, simples, vivendo dia a dia, como se fosse o ultimo, fico assim. Como um viciado que se vangloria de naquele dia não ter bebido ou se drogado ou estuprado... Uma vitória anônima e inexpressiva, um guerreiro solitário, tentando vencer a si mesmo, sem aplausos em teatro vazio.

Felizmente não sou viciado em nada, eu acho. Talvez nada seja forte demais de dizer, bucetas me são benvindas, uma boa buceta é capaz de me conduzir a um amor profundo, mas mesmo neste aspecto, o tempo parece que estar me lapidando. Seja lá o que for lapidar neste âmbito...

Mas ao que parece, a vida não é pra ser vivida assim. Foda-se. Nada disso funciona como um filtro para as dores, para os desacordos e loucuras. Isso você precisa ir aprendendo como cada ser humano que você se depara. Tento evitar muitos deles... É mais saudável assim.

Depois de inúmeros casamentos, você aprende a não dar muita importância para nada. Muitas pessoas a nossa volta são feitas de plástico mesmo, elas não vão dar falta de você, elas não se importam, isso é natural. A grande questão é se você consegue ficar em paz com isso? É disso que falo, de tempo. Perdemos um tempo imenso tentando acertar quando apenas tudo que se precisa é estar aberto, e deixar a natureza fazer o resto.

Eu estava olhando pela janela do quinto andar. Enfiado em pensamentos longínquos, e minha alma descansava. A passividade do dia me invade, por veze sou frágil com dentes afiados. Sou um cão de guarda agora, com cães por dentro.

Inescapavelmente lembro-me do ultimo cachorro que tive. Um policial que feroz, negro e amarelo, que respeitava muito meu pai. Ele foi meu sonho realizado, pois desde muito criança quis ter um cão chamado Cyborg. Cyborg foi me dado, e cresceu como crescem as coisas boas, altivo e feliz.

Era um cão fantástico, passeávamos, ele se tornou muito forte, mas nunca atacou ninguém ele era do bem. Dei todo o carinho para ele... E ele correspondeu. Chegava da escola, e lá estava ele feliz latindo alto e forte. Então saiamos para caminhar, todos os dias. É como eu digo... As vezes as coisas não são para serem assim...
Com o tempo veio a minha irmã. O espaço da casa era muito pequeno, ela um bebe e Cyborg um dia soltou-se da coleira... E foi rapidamente em direção a ela... E ele a lambeu, surpreendendo a todos que estavam assustados. O amor tem aspectos estranhos. Cyborg havia ficando grande demais para o espaço que tínhamos.

Cagava por todo lado, minha mãe e pai trabalhavam o dia inteiro e tempo e dinheiro fazia falta... A coisa foi se tornando mais difícil, e ainda mesmo sem ocorrência negativa alguma, tinham medo que Cyborg atacasse a criança ou alguém.

Eu não concordava com isso. Mas a opinião de criança não é importante, a minha não foi. Então um dia meu pai veio a conversar comigo:

-Filho... O Cyborg terá de ir embora...
Meu pai era um cara que não tinha indiretas. Falava diretamente o que era para ser dito, seja bom ou ruim... gosto disso. Detesto floreios. Acho que herdei isso dele.

-Mas por que pai? Eu gosto do Cyborg, ele gosta de mim... somos amigos...
-Não temos condições mais de cuidar dele... E tem mais a tua irmãzinha também... ele é muito grande e feroz... Temos medo que sem querer ele brinque ou a ataque... Bem um incidente assim seria horrível... pra todo mundo...

Nada disso fazia sentindo pra mim. Não gostava daquela conversa. Mas meus argumentos foram vãos, eles já haviam decidido, e tudo que me sobravam eram as lágrimas. Eu perderia meu amigo não para a morte, mas em função da vida.

Aquela noite foi difícil. Quando cheguei a porta que dava para o pátio. Cyborg me olha e não late, um silencio como uma lamina cortando o espaço, ele ficou sentado me olhando, parecia entender oque estava se passando. Será? Não contive minhas lagrimas, não conseguia olhara para Cyborg, não conseguia olhar para meu pai, e pelo que recordo lembro que foi os primeiros pensamentos de morte que tive. A ideia do suicídio deve estar presente na vida, como uma prece ou anestésico para a dor mais profunda. Com o tempo fui pensamento menos nisso.

Então amanheceu, era sábado e um amigo de meu pai viria levar Cyborg, para uma casa cujo quintal era imenso, mais ou menos uma quadra. Ainda lembro de Paulo e sua charrete grande, chegando em nossa casa. Ele sorria não sei de que. Fomos todos para frente da casa, eu levei Cyborg na coleira, ele aceitou passivamente, eu não, chorava sem parar. Ele subiu na charrete e 

Paulo que disse, vendo a minha tristeza:
-Fabiano... vai lá ver ele sempre... Ele continua sendo teu, e minha casa vai tá aberta, ele é o teu amigo... E vou cuidar dele pra ti, como um amigo que ajuda outro.

Todas as palavras ditas eram vãs, soavam vazias como um sino que não toca, tentei me acalmar. Então Paulo sobe na charrete, eu, meu pai e minha mãe estávamos ali... A charrete começa  afastar-se lentamente, no trote do cavalo... E o olhar de Cyborg estava em mim...e eu o olhava fixamente. Meus pais entraram para dentro de casa, e eu fiquei ali sozinho... Fiquei até não mais conseguir vê-los  na distancia, uma dor fisgando lentamente.

Lembrei-me disso, mas hoje a dor não é mais a mesma. Mas sei que depois disso não fui mais o mesmo, me sentia roubado. Qualquer sofrimento te modifica, você fica com uma breve cicatriz. Eu senti saudade de Cyborg e não sinto saudade de pessoas que viveram muito próximas a mim da mesma forma.

Visitei Cyborg algumas vezes, e depois nos perdemos... O tempo trabalhou, nele e em mim, ele veio a morrer forte, como uma espécie de insanidade mental...  Sei que Paulo fez o que pode. Foi isso.

Por vezes temos sede de saudade
E fome da alma
Como o encontro que jamais ocorrerá
O tempo como ondas
Leva e apenas leva
Mas as marcas que ficam traçadas
Na superfície da alma
Ficam... E assim devem ser.



ps: vou tentar localizar o Paulo para que ele conte a historia de própria voz. Se ele ainda estiver vivo eu gravarei um vídeo e vou querer saber o final de Cyborg e como a coisa se deu.


Luís Fabiano.



Nenhum comentário: