Doces Defeitos
Gosto de ver os berrantes defeitos humanos, desfilando em cortejo, no alarde doentio da desgraça. As deformidades da personalidade enroscando-se, metamorfoseando-se e levando–nos a abismos, infernos e quando em vez, um breve sorriso cariado de Deus.
De certa forma, tive uma ponta de inveja dos viciados intrincados, aqueles que por o motivo seja o que for, entregam-se a vícios de toda sorte. Nunca fui assim, confesso que tentei alguns, mas nada aconteceu, tudo era muito fácil de livrar-se, sem que causasse maiores transtornos, além do mais, tais viciações não me satisfaziam. Algo sempre ficava para traz. Talvez esse seja o ponto. Nem cigarros, bebidas, sexo, paixões, nada. Entendo que seja uma espécie de defeito de fabrica, ser impermeável a isso.
Que me lembre, nunca perdi minha cabeça por nada, por considerar que nada vale a perda de minha cabeça. Realmente nada. Não tive crises de privação, nem ciúmes incontroláveis, alias nunca senti ciúmes em minha vida. Detestava as cenas que quase todas as minhas mulheres faziam por questões de ciúmes. Achava aquilo sinal de uma fraqueza, uma insegurança plena. Naturalmente, dentro das condições normais. Nunca convidei por exemplo, uma de minhas ex-mulheres para transarmos com sua melhor amiga. Os três felizes, os três porquinhos, não convidei, mas pensar claro que já pensei.
Lembro-me de uma vizinha do meu quarto casamento. O contraste pleno de tudo, fazia o perfil de uma mulher suja. Morávamos nos arrabaldes da cidade. Minha mulher não gostava dela. Porque todas as manhas, quando íamos sair para trabalhar, enquanto eu tirava o carro, ela vinha um chambre, meio transparente, usando umas calcinhas velhas e sem sutiã, ia varrendo o quintal, quando em vez me olhava. Poesia pura. Um dia foi lindo, tive que separa-las, quando se trocavam elogios. Era puta pra cá, vagabunda pra lá, vai cuidar do teu homem adiante. Fiz de conta que me importei com aquilo, mas na verdade achei fantástico. Aquela vizinha tinha todos os atributos da desgraça, mas por falta de oportunidade nunca tivemos nada.
Então minha esposa caiu na asneira que querer que eu sentisse ciúmes. Diga-se de passagem, ciúmes nada têm haver com amor, ciúmes é uma espécie de doença. A insegurança mais primitiva do humano, a falta de certeza de si, projetada no outro. A deslealdade entre as mulheres reside exatamente nisso. Uma fragilidade feita de aparências melhores ou piores, cuja as entrelinhas querem dizer: você não é mais tão fértil quanto eu!
Eu considero tais comportamentos normais, sem que isso me altere, não isso. Então ela começou a querer provocar meu ciúme, queria a minha doença em forma de amor. Queria a toda prova que algo eu fizesse, que reagisse patologicamente, fizesse o esparro, a disputa dos galos para comer a melhor galinha, os cães lutando para pegar a cadela no cio, os búfalos batendo chifres para conquistar a fêmea. Não preciso dizer que achei isso ridículo.
Então ela se envolveu com um parente próximo. Um primo desavisado, em um churrasco em família, foi uma cena linda. Não sei se sou um corno convicto, talvez, ou simplesmente não me interesso por emoções tacanhas. O verão era quente, ela usava uma minissaia bonita, muito curta e mini-blusa.
Quando chegamos ao churrasco, as bebidas foram a plataforma de lançamento. A cerveja entrou como agua, junto com ela, a merda em rodo. Joguei-me em uma cadeira de praia e não fiz nada, exatamente como gosto, notório vagabundo. Ela andava de um lado para o outro, e as voltas com o meu primo, que até ali não sabia que ela estava comigo, ficou achando que era minha amiga ou sei-la o que. Andavam juntos entre as cervejas, saíram de carro para buscar algo, eu naquela sombra, me anestesiando com a cerveja e coraçãozinho, nada me tiraria dali.
Quando um dos meus primos veio ate mim e disse:
-Fabiano, tu tá legal?
-Como assim?
-Cara, aquela moça que veio contigo é tua mulher?
-É.
-E tu não vai fazer nada?
-Fazer o que?
-Uma atitude de homem cara, uma posição, ela tá se fresquiando para o fulano de tal, ele vai comer ela cara, olha o jeito dela ali na churrasqueira? Tais vendo...?
Meu primo deu uma boa encochada nela. Ela meio alta, ele meio alto e eu entediado. Conheço um pouco a alma feminina. E a crueldade maior que se pode fazer a outro ser humano, não é agredi-lo, não é ofendê-lo ou fazer cenas bizarras. Detesto cenas. Mas deixa-lo entregue a sua própria consciência, a inescapável consciência de culpa, as vezes demora, mas, mais cedo ou mais tarde ela vem a tona. Como um câncer carcomendo por dentro, vermes intestinais, cupis da madeira, te engolindo por dentro. A cena mais dantesca disto, é o Crime e o Castigo de Dostoievski. A culpa vem de dentro.
Não me levantei daquela cadeira de praia. Havia uma espécie de indignação dos parentes, tios e tias. Mas achei não devia dizer nada, melhor não tinha vontade alguma, afinal atire a primeira pedra, aquele que estiver sem pecado, ali todos tinham pecados demais, melhor calar.
A tarde caiu e anoiteceu, achei que era hora de ir embora. Ela estava muito bêbada, todos já haviam visto sua calcinha vermelha fio dental, até o cachorro da casa. Despedi-me amigavelmente de todos e fomos. Em casa, descemos um pouco mais ao abismo, mas eu estava com bom humor. Ela me olha nos olhos e vomita:
-É assim que tu me amas? E desse jeito? Tu não te importas com nada que eu faço, nada, se eu tivesse dado para teu primo? Ele queria me comer tu sabias? ha,há,há...
-Sei, todos sempre querem te comer.
-Só isso que vais dizer?
-É.
-Tu és um merda, um corno de merda, otário...
Costumo dizer para as pessoas, que para me ofender, precisam se esforçar mais, não sou facilmente ofendível, já me chamaram de coisas terríveis, mas estranhamente eu nunca me senti tocado, tá tudo bem. Acho que não tenho baixa estima ou sou muito idiota. Ela ficou me dizendo tais coisas, enquanto eu fui pegar o livro Contraponto de Aldous Huxley, e adivinhem, sentei uma cadeira de praia e fiquei lendo, enquanto ao fundo a voz dela ia desaparecendo, pelo cansaço o sono.
Ainda gosto dos defeitos humanos, gosto das fragilidades, gosto dos seus gritos silenciosos, das notas harmônicas da agonia, cavando sulcos na alma para que ali seja depositada uma boa semente, mas quem tem disposição para entender a fragilidade que cada um de nos carrega? Nossa ignorância prende as asas, mas nosso desejo mais sincero é voar, voar para além de toda a miséria, eu também quero...
Luís Fabiano.
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