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domingo, maio 22, 2011




Crueza adocicada

Ela resolveu me trocar por sua melhor amiga. Nada de choque, nada que não fosse esperado, raramente a vida é surpresa. Ela sentava-se alegremente, e depois que bebíamos um pouco, sempre a narrava com uma fala excessivamente entusiasmada, a qualidade de sua amiga.

Em minha vida nunca sofri de ciúmes, embora já tenha sido corneado uma dúzia de vezes, mas nada de fiascos, creio que me sentiria estranho se sentisse algo assim.

Ser devorados por monstros internos, movidos por inquietações e valores que impomos a nossa mente, sem que isso seja necessariamente pensado por nós, aceitamos o que supostamente é certo, na esperança de ser apenas igual a todos. Haveria tempo no meio deste denso caminho de aceitação fácil, para ouvir nossa verdadeira voz? O berro dos nos nossos desejos mais profundos, quando os medos que nos envolvem batem em retirada? Quando existe um pouco de coragem para afrontar o que for?

Fiquei olhando para Kátia, enquanto ela dizia suavemente, o quanto eu era descartável, como um absorvendo usado, um papel higiênico sujo, havia de certa forma uma crueza nas suas colocações, queria que eu sentisse alguma coisa, raiva, ciúmes uma revolta talvez, mas por razões que não entendendo bem, não sinto nada disso. Fiquei em silencio olhando-a nos olhos apenas:

-Sabes né Fabiano, não te acho mais o mesmo, sabes né... e então não quero mais nada contigo, já deu o que tinha que dá entre nós...
-Hum, hum...tudo bem.

Houve um silencio breve, e ela seguiu:

-Ontem quando encontrei a Nina, na Praça Coronel, cara, olhei nos olhos dela, ela tinha aquele brilho sabe? Tu não sabes não... Um brilho cheio de esperança, com cheiro de algo novo, algo que faz a vida valer a pena de verdade...
-Claro que sei, ela tem... o que ? 25 anos?
-24, mas nada haver com a idade... ela é algo, faz meu corpo vibrar, acho que to amando, só pode ser isso!

Katia tem uma cabeça vaporosa, vive nas nuvens, e sinceramente não sei por que tínhamos alguma coisa. Sempre dizia que jamais gostaria de mim de verdade, que eu servia pra uma trepada e deu. Porem vinhamos mantendo isso em banho Maria, algo muito sem graça, como que assua o nariz semanalmente, sem a mínima emoção. Os seres precisam de paixão, viva com paixão, mate com paixão, transe com as arvores, mas tenha paixão.

Não creio que dê mais para coisas assim tão vazias, eu preciso ao menos uma pitada de emoção, nada de um mergulho cego na paixão desenfreada, também detesto esse tipo, costumam ser patológicos demais, passionais ao extremo, transformam a vida em um grilhão, e o encantamento se desgasta rapidamente:

-Não sei como tu consegue viver assim cara, tu não reage, tu não chora, tu não bate... cara tu és a pessoa mais vazia que eu conheço...
-Certo Katia, obrigado, não faz meu ego ficar maior do que ele já é... agora tudo bem, vai lá encontrar a Nina, não se preocupe com seu ego, você me deu o pé na bunda, então tá tudo bem...não é?
-É, é... tchau otário.

O lugar na mesa ficou vago, algumas pessoas me olhavam de canto de olho, talvez esperando alguma cena típica, o copo de rum estava pela metade, poderia beber uma dezena deles e Katia já desaparecia mais rápido que um jato de porra. Existem situações impensadas que se constroem inconscientemente a busca de sua própria solução, talvez essa seja a beleza da vida, tudo tão errado, tudo tão certo e nós no meio, pêndulos entre teias, ora enredados, doutras desfazendo enredos.

A cadeira vazia do bar olhava pra mim, me refletindo num misto de desafio, um blues silencioso e fumarento, o rum entorpece os sentidos, relaxa o coração e a vida torna-se macia como um sonho bom, sentia-me livre, desapegado, o copo vazio pedia outro trago.

Cada dia me convenço mais que é preciso desapegar-se das coisas, da vida, das contas, do amor, dos medos e da morte, apenas bata suas asas levemente, se entregue ao vento, o carinho do vento.




Luís Fabiano.

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