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quarta-feira, fevereiro 09, 2011



Vida instantânea


O bom se ter dezenove anos, é apenas ter dezenove anos e o direito absoluto de ser idiota. Naquela época dividia meu tempo entre atividades militares e claro, putas. De resto detestei o quartel.

Tentavam nos impor regras invioláveis. Em primeiro momento, me iludi que as regras eram assim. Mas nada como o tempo. O tempo vai te dando a sapiência que não existem regras invioláveis.

E mais, se você for inteligente o suficiente, também não existirão punições. Fique sempre nas exceções. Fiz algumas amizades lá, que duraram o mesmo tempo que eu fiquei no quartel. Não sou muito bom com amigos, nunca fui. Estes companheiros me acompanhavam, em empreitadas noturnas. Entre bebidas e puteiros. Eu torrava minha grana toda nisso. Além do mais, como hoje, minha cabeça não se ocupava com nada. É preciso eventualmente dar um foda-se a vida, as preocupações e ao resto que vai te matando lentamente.

Foi um bom período. Éramos divididos em nichos de comportamento. Eu era do nicho dos desarrumados, os de farda amassada e coturnos sujos. Realmente nunca dava bola. Isso me rendia muitas mijadas. Só me alinhava, quando tinha alguma inspeção de oficiais. Era um molambo, entre os molambos, era assim que nos chamavam.

Mas foi entre esses caras, que conheci Jair. Era um tipo muito duro. Falava pouco, sempre com cara de poucos amigos, e tinha o tipo físico forte, muito forte. Quase tudo era resolvido na porrada. Não se podia olhar para ele, que já vinha: Que foi cara? Algum problema??Qual é?

Isso poderia ser simples. Ele era apenas um troglodita sem uma metade do cérebro. Porem não foi bem assim. O tempo e a convivência terminaram por dizer que existia algo a mais ali.

Naquelas primeiras semanas, éramos todos estranhos vestidos de verde. Uma tentativa de nos tornar iguais. Tudo era muito chato. Entendo que o ser humano precisa de alguma disciplina, mas sou naturalmente indisciplinado, a desordem me atrai, o caos me atrai, porque representam nossa verdadeira natureza.

A noite caia e tínhamos o tempo livre para alguma vagabundagem. Estávamos todos presos no mesmo alojamento. Jair era deixado de canto. Ele sua brutalidade natural. Ás vezes se quer criar um mundo somente pra si. E o erro disso é querer faze-lo pelas vias físicas. Não é preciso isolar-se. Basta distanciar-se de tudo. Você pode estar ao lado de quem quer seja fisicamente, e distante por abismos intransponíveis, feito de emoção desencontrada, por pensamentos ocultos. A bem da verdade, somos mais feitos de coisas ocultas, que as objetivas vistas aos olhos. Movidos pela noite que há em nós, em busca quem sabe de um amanhecer um dia.

Para que tudo fique como esta, é bom esconder certas coisas, inclusive de nós mesmos. Distancia é a chave. Os que não sabem fazer, naturalmente enlouquecem, adoecem e outras porras.

Os dias se tornaram chatos naquele alojamento, cheio de homens saídos da adolescência, com o saco cheio de porra, e tentando dar provas de machezas uns para os outros. Com o tempo passei a detesta-los todos. A paz era difícil. Jair ainda mantinha–se longe. Uma noite daquelas que a madrugada avança, fomos surpreendidos por uma gritaria no banheiro. Éramos cem homens, e todos levantamos para ver o que estava acontecendo. Por algum motivo até ali desconhecido, Jair resolveu tornar-se mais violento.

Ao ver um dos colegas no banho, agarrou-o e queria estupra-lo na força. Literalmente, o soldado X, se salvou porque berrou muito alto. Risadas de todos. Então Jair tão macho estava interessado em um cú. Nada contra o cú. Mas não era preciso um show.

Aquilo rendeu muita merda. Fomos todos punidos pela bagunça da madrugada. Jair e o soldado X ficaram presos literalmente. As leis e regras são muito “justas”. Foram acusados de pederastia nos muros do aquartelamento. Com isso o conceito de Jair caiu muito. Passamos todos a achar que não era tarado e sim, gostava de homens.

O tempo provou que era. Quando foi solto Jair, não era mais o mesmo cara. Parecia estar com alguma depressão profunda. Não respondia a nada. Naturalmente numa condição destas, é preciso observar. Ninguém observou nada.

Então fomos tirar guarda em uma região inóspita. Éramos um grupo de vinte, fazíamos turnos de três horas e dormíamos quatro. Jair foi conosco. Na hora da janta, estamos todos reunidos, comíamos entre risadas, e cada um com seu fuzil próximo. Tínhamos uma brincadeira de engatilhar a arma e fazer que estava sendo disparada contra o outro. Coisas idiotas. Não acho que não se deva brincar com armas, acho apenas que se deve saber como brincar com armas, pois pode ser um jogo de xadrez. Check mate

Então a arma de Jair dispara, contra a própria cabeça. Ele havia calçado a cabeça no cano da arma, para descansar, mas ela estava apoiada em uma pedra que rolou para o lado fazendo o disparo acontecer. Espalhando seus miolos para todos os lados e acabando com a nossa janta. Um maldito acidente. Eu nunca tinha visto ninguém morrer daquela forma, e apenas uma coisa eu posso dizer, é rápido.

Depois disso vieram muitas investigações, e perguntas, até que caiu no esquecimento. Consideraram Jair, um cara problemático, e ainda tinha o negocio da pederastia. Bem ele ficou resumido a uma bicha que nunca se assumiu, e talvez tivesse se matado. Afinal matar-se não é crime.

Alguns de nos ficaram traumatizados. Eu não. Mas sempre lembro que num piscar de olhos a vida pode acabar querendo ou não. Guardei pra mim, que se um dia eu quisesse me matar teria que ser assim, em um milésimo de segundo, sem dor.

Segui minha vida igual, aquele fato não me afetou. No dia seguinte estava entre as putas amadas, e uma boa cachaça, lembro que ainda bebemos ao Jair. Afinal que mais poderíamos fazer?

Luís Fabiano.

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