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quarta-feira, setembro 22, 2010

Bicho de Deus


Bicho de Deus.

Pode-se medir uma amizade de várias maneiras. Por coisas que se permitem, e que se fazem entender nos instantes cruciais da existência. Um amigo não é o cara que vai tirar o revolver da tua mão, quando você estiver com vontade de puxar o gatilho nos próprios miolos.

Será cúmplice até o último suspiro. Não estou sendo pessimista, mas existem momentos que a vida realmente não tem porque continuar. Enfiem toda a auto-ajuda no rabo.
Houve uma época que tive profusão de amigos. Que isso fique claro. Profusão de amigos não existem. Muita gente próxima de você, disposta a sorrir, divertir-se e outras tantas coisas boas, não podem ser chamados de amigos. São pessoas que sorriem apenas, e talvez não passem disso. Hoje me restou dois ou três e tá ótimo.

Nesta época, trabalhava com venda de carros importados. Nunca tive problemas com meus patrões. Mas com este tive inúmeros. Ele tinha um estilo de explorar seus funcionários ao extremo. Fazia-nos fazer coisas que não estavam no jogo normal.

Eu deveria atender o publico e limpar o banheiro também, varrer o chão, vender as peças de reposição, carregar o lixo, e se não tivesse nada pra fazer, era para ajudar na mecânica.
Nada pra fazer? Grande filho da puta.

Ele ficava sentado a sua mesa apenas berrando. Façam, isso, façam aquilo. Me tragam um cafezinho. Não foram poucas vezes que ele tomou um café batizado de cuspe, mexíamos bem, ficava invisível. Principalmente porque vivia nos xingando excessivamente,gratuitamente.
Eu o Jorge, que fazíamos o trabalho todo. Eu chegava arrumado, porque ele pedia que viéssemos arrumados. Então ele dizia:

-Vocês dois, vão pra mecânica hoje, se engraxar um pouco - ria sarcástico.

As vezes não creio que existam pessoas assim. Mas o cara era.
Apenas nos olhávamos aborrecidos, mas era o trabalho. Jorge ficava realmente aborrecido. Dizia xingamentos para o filho da puta, pelas costas dele e batizava o café. Depois passava. Nos tornamos grandes amigos pela dor. Afinal aquilo era todo dia. Jorge era um cara bom,gostava dele. Era casado como eu, e sua vida era melhor que a minha. Um dia conversando disse a ele:

-Jorge, se algum dia eu quiser me matar, tu me ajuda?
-Não gosto da ideia, mas se isso for da tua vontade...ajudo, que Deus te receba.

Eu falava sério. Estranhamente isso me dava esperanças.
Mudávamos de assunto. Existiam coisas que salvavam nosso dia.
Fazíamos um jogo de bicho todo dia. Acreditávamos na sorte. Precisávamos acreditar em algo. Um dia talvez ela sorrisse para nós. Para mim trabalhar lá foi um exercício de paciência. Vejo isso desta maneira hoje. Minha vida pessoal estava tão fodida quanto meu emprego. Meu primeiro casamento estava se destruindo dia a dia. Asfixiado pelo ciúmes, pela vontade de controle total de minha esposa e por excesso de amor. 


Pensando melhor, não casei com uma mulher. Ela parecia minha mãe, e eu devia ter uns três anos de idade na cabeça dela. Me tratava como idiota, dizia que amava. Definitivamente as pessoas não sabem o que é amor. Meu trabalho era horrível, ganhava a metade de um salario mínimo e não tinha carteira assinada. Meu casamento não era fácil, tinha as eternas reclamações, que a merda do dinheiro não dava pra nada. Minha vida nunca foi com muito dinheiro mesmo. A dela também, mas agora casada que ela esperava? Chuva de grana?

Todas as manhas chegava ao trabalho e analisava o humor do chefe. Isso definiria o dia. Tinha dias que ele nos transformava em um vomitório. Cuspia, escarrava, mijava cagava e nós ali de boca aberta apenas engolindo. Fazia parte do trabalho. Nos precisávamos trabalhar.
Então ao meio dia, fazíamos a fezinha no bicho, junto ao nosso amigo Sujeira. Ele tinha este apelido porque tinha uma barba imensa e negra, não era muito dado a higiene. Tinha um bafo eterno de cachaça e cigarro. Mas era o bicheiro que tínhamos. Colocávamos nossas esperanças nas mãos deste homem. Nossas esperanças de ganhar um extra, nas mãos de um cara, que vivia bêbado, imundo e tinha uma barba que parecia uma criação de pequenos animais.


O fios cresciam por sobre a boca, ele não cortava. Então ficava aqueles pelos babados, sujos na frente da boca. Naturalmente dificultava de entender o que ele dizia as vezes.
O patrão aquele dia estava com um humor do cão. Eu também não estava bem, e tão pouco Jorge. Todos fodidos. A vida ás vezes parece uma cilada. E todos podemos cair. Confesso que a vontade que tinha, era dar uma imensa cagada, daquelas bem meladas na mesa do chefe. Talvez fizesse. Mais tarde.


Então ao final da tarde, saímos ás dezoito horas. A primeira coisa a fazer era dar uma conferida no jogo feito. É engraçado de onde as esperanças podem vir. Chegamos no cubículo de Sujeira, ele sorria com seus dentes cariados:
-Você ganharam, vocês ganharam...vejam vejam...

Olhei para o Jorge, que ficou congelado, meio não acreditando. Peguei o papeis os números conferiam, ótimo tínhamos ganho...vejam só. A esperança nos abraçou uma vez.
Nos abraçamos os três comemorando aquela vitória. Aquela grana equivalia a um ano de salário. O fedor de sujeira não importava, minha mulher não importava, o patrão filho da puta também:

-E ai Jorge, vamos comemorar ?
-Minha comemoração será, pagando minhas contas, isso vai dar uma folga lá em casa...
-Jorge, você vai pagar as contas depois... e agora você não vai comemorar, nada?
-Não, vou gastar em nada, vou dar pra minha mulher...

Eu entendi Jorge. Mas não concordei. Esse era o estilo dele. Não o meu. Deus tinha nos dado um sinal aquele dia. Eu iria para o bar da Chica. Um conhecido puteiro frequentado por mecânicos, pintores, serventes de obra e todo o pessoal que tem profissões que pegam pesado.
Então Jorge me pergunta:

-Que número tu jogou?
-O numero de nosso calvário. O numero da loja cara.

Ele balança a cabeça. É engraçado de onde pode vir a esperança ás vezes.


Luís Fabiano.
A esperança é uma piada que chora.



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