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segunda-feira, julho 26, 2010


Retalhos de um coração.

Ontem fui visitado pelo passado coadjuvante. Quando se tem muitos passados, isso torna-se um pesadelo de olhos abertos. Fui comprar carne. Um bom pedaço de picanha e vinho para final de semana. O rum estava bem, garrafa quase cheia, eu feliz.
No caixa do supermercado, lá estava o passado. Chego á conclusão que nada muda facilmente. Nem eu e ninguém. Emoções coadjuvantes, como um cenário teatral, pano de fundo. Ela ainda era a mesma, mesmo jeito, mesmo ar superficial, mesmo marido. Aquele encontro não durou cinco segundos. Mas é impressionante como se pode revolver tanta merda em cinco segundos.
Não gostei de minhas lembranças, mas creio que naquele instante eu era um cativo. Cativo de mim mesmo. Tentei esquecer, fugir.
Fui atrás de minha carne. Quando volto, ela ainda estava lá. Desta vez me viu, fez naturalmente sua cara de nojo. Estou acostumado com isso. É algo que por vezes não se pode escapar. Aquele olhar que as pessoas fazem como observassem sua merda boiando no sanitário. Sorri com enfado.
Percebi que não teria escolha. Iria lembrar dessa merda toda. Tratei então de mergulhar fundo, já que a fila era grande, a moça do caixa era lenta. Poderia pensar a vontade. Os pensamentos eram como uma faca cega. Arranhava, mas não mataria.
Conheci Roseli porque namorava sua melhor amiga. Não foi um grande namoro, acabou em um piscar de olhos. Como um cão de rua atropelado, com arrancos de desespero. Não posso dizer que conhecer Roseli foi um prazer. Mas creio que fazia parte do pacote familiar. Fomos apresentados em um almoço. Estranhamente naquele almoço fui visitado por outro passado. O passado não é modificável.
Roseli não era agradável, nem bonita, nem gostosa, inteligente ou mesmo sensível. Não gostava dela. Entendo que por vezes é difícil perceber qualidade nas pessoas. Mas também sei que existem pessoas não as possuem. O não gostar faz criar fantasmas e monstros onde não existem.
Talvez os olhos verdes? Pode ser, eles faziam uma bela combinação com uma boca negra repleta de dentes torcidos, escurecidos pelo cigarro e café. Como uma pintura surreal, ás vezes o aberrante tem sua graça.
O que posso dizer, eram bem amigas. Porque uma ajudou a outra quando merdas aconteceram em suas vidas. Naturais problemas de relacionamento. Coisas comuns, espancamentos e traição. Não planejamos estas coisas, mas por vezes como uma avalanche, somos pegos. Ficaram muito amigas e cumplicies.
Porem a vida é irônica. Para mim tudo soava indiferente. Roseli era insuportável. O maximo que podia fazer é aparentar educação. Creio que passo fazendo isso tempo demais em minha vida. Razão pela qual tenho procurado afastar-me das pessoas. Fico em paz.
Não apenas a boca negra causava repulsa. Mas os sentimentos de frustração lhe vazavam da personalidade. Como um saco de merda furado. Ela tentava esconder, mas não era possível. Eram problemas demais. Não tenho o costume de sentir pena de ninguém. Pena não é um bom sentimento. Mas tudo que Roseli queria era isso. Sua conversa girava em torno de suas intermináveis queixas. Que iam dos filhos egocêntricos a um marido que não era muito bom em fidelidade.
Quando ela vinha visitar-nos, eu deixava as duas conversando, ia fazer qualquer coisa. Com elegância. Era sempre a mesma conversa. Não perco tempo, com quem apenas sabe queixar-se. Não suporto queixumes. Porem naquele dia o trem saiu dos trilhos, o bambu quebrou no meio.
Roseli conversava alegremente, de-repente coloca as mãos sobre o peito e cai desmaiada. Sei que não cabe um comentário desta monta. Talvez ninguém pensasse nisso nestas horas. As tetas de Roseli eram bem caídas, mesmo sendo uma situação critica de saúde. Ela desmaiada, com as mãos sobre os seios, pareceu-me interessante, pelo aspecto plástico.
Tive a impressão que ela havia morrido. Mas não. Teve uma sincope, mas percebi que ainda respirava. Não sou de ficar aflito. Não tenho um perfil nervoso nestas horas. Fico muito frio, quanto pior for a situação, mais fico frio. Ajudei e erguer Roseli, coloca-la no sofá. Ela respirava forte, com dificuldade. Sugeri:
-Vamos leva-la ao hospital agora, antes que morra.
-Sim,vamos.
Mas acho que gostaram dos meus termos. Fiquei sabendo depois. Não desejava a morte de Roseli. Não desejo a morte nem dos meus inimigos. Morrer por vezes é sem graça.
A levei para meu carro, infelizmente ou felizmente, a saia dela levantou com o vento. Não foi uma coisa bonita, mas naquele momento descobri uma bela virtude de Roseli. Ela usava uma calcinha bege furada na frente, que deixava sair para os lados, tufos de pelos e labios de sua vagina. Confesso que não senti-me um filho da puta. Não planejei, coisas da natureza. Gostei do que ví. Uma imensa e generosa vagina, de uma infartada.
Quando chegamos na Santa Casa, ela foi recebida imediatamente. Tinha um bom plano de saúde. Telefonamos para os familiares. Minha parte de bom samaritano estava feita.
Mas permanecemos lá, aguardando noticias. Estas não demoraram muito, quarenta minutos depois um médico chega:
-Parentes de Roseli?
-Sim.
-Bom, ela teve um infarto. Esteve “parada” por uns três minutos . Mas conseguimos reverter o quadro. Ela encontra-se agora estável, mas o quadro é delicado.
Eu não estava preocupado. E gostei muito da terminologia e seriedade do médico. Parecia que falava sobre uma bomba de combustível quebrada, uma descarga que deixava de funcionar. Na verdade o carro tinha morrido. Mas conseguiram dar uma enganada na “morte”, e tudo voltou a funcionar delicadamente.
Seguiu o médico:
-Será preciso fazer procedimentos imediatos. Cateterismo e não resolvendo uma cirurgia cardíaca. O quadro é muito grave.
Disse tudo isso franzindo a testa, para inspirar gravidade.
Em outras palavras, Roseli estava fudida. Estranha a vida. Normalmente sob estas condições temos a tendência de valorizar muito a existência, querer viver mais intensamente. O ser humano por vezes é muito imbecil. Assusta-se em tais situações, deseja modificar tudo. O susto passa, tudo torna a estaca zero. Estranha inteligência.
Lembro, aqueles dias foram interessantes. Pude ver a comoção familiar. O marido indiferente de Roseli, tornou-se uma espécie de guardião da família. Os filhos ingratos e rebeldes, repletos de vaidade, vivendo como reizinhos do lar. Tornaram-se amorosos. Uma transformação instantânea. Você acredita em transformações instantâneas ? Nem eu.
Minha namorada tornou-se a segunda guardiã de Roseli. Coisas da gratidão imagino, Roseli não merecia. Mas a gratidão assim, é uma dívida que se paga. Com emoção, com dinheiro, com ficar junto, na hora que o bixo pega. Você lava minhas costas, que eu lavo as suas.
Me desliguei da saúde Roseli. Desliguei-me da merda toda. Não quis saber de mais nada. Eu apenas assistia tudo isso de longe. Minha namorada, que não era a mais ardente . Com a doença e os cuidados com a amiga, converteu-se em enfermeira assexuada. Logo eu que sempre gostei de enfermeiras. Tive que me virar na mão mesmo. Afinal cada um com seus problemas. O meu era, com quem iria trepar?
Roseli, depois de um mês e alguma coisa, conseguiu recuperar-se. Havia ganho peso, parou de fumar. Mas voltou depois de algum tempo. O vício é necessário a alma. E um ano depois de tudo isso, era exatamente a mesma pessoa. Tudo voltou a normalidade.
A maldita fila não andava. Minha mente é especialista em revolver aquilo tudo. As vezes lamento ter tão boa memória. Mas acho que havia lembrado coisas demais. Em um dado instante antes de ir embora, Roseli olha-me incisiva. Um olhar pode transmitir muita coisa. Havia raiva ali. Por que deixei sua amiguinha para trás. Era para tê-la deixado antes.
Não podia fazer nada. Tudo que tentava pensar era assar minha picanha. Finalmente chegou minha vez no caixa. Impressiona como uma fila pode ser destrutiva. Acho que é por isso que as pessoas não gostam de filas. Na fila, elas são obrigadas a ficarem consigo mesmas. E isso por vezes pode ser terrível. Mas agora não precisava preocupar-me mais. A moça do caixa me dá boa tarde sorridente.

Luis Fabiano.
A paz são, pedaços de emoção que juntam-se.

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