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sábado, abril 10, 2010


Remando das trevas, para luz ( A vida de Márcio)

Gostamos que na vida tudo tenha uma explicação limpa e lógica. Mas somos nós que queremos isso, ninguém se importa. Quando penso nisso vem a questão do destino em minha mente. Será que Deus resolve estas questões arbitrariamente? Por convicção sei que não, seria muito injusto esperar do Pai amoroso que ele nos estuprasse lentamente, com carinho e ainda dissesse que a culpa é nossa?Não.
As vezes quando vejo a vida de algumas pessoas, parece que não há escolha. A pessoa nasce naquela condição, tudo determinando para o caminho “esquerdo”, sem chances de talhar algo bom em sua vida.
O resto da historia nos sabemos, termina sempre do mesmo jeito. Parece que aquelas pequenas vozes ocultas do ser humano, se fazem ouvir,um sussurro, na mente, no coração, os filhos da puta, anjinhos e demônios, disputando mais uma alma no jogo da vida.
Quando nos mudamos para a Cohab Fragata, posso dizer que foi uma mudança radical. Era longe de tudo, realmente muito longe, mas a casa era nossa ao menos, era que meu pai dizia. Antes morávamos mais no centro da cidade, mesmo lá, eu tinha apenas dois ou três amigos, nunca fui de muitas amizades, sempre preferi mais a minha solidão.
Custei muito a fazer amigos no lugar novo. Estava com onze anos e tentei aprender a jogar futebol, já que era só que lá se fazia. A praça era muito boa,bem organizada, mas futebol não era a minha. Meu pai me deu a real:
-Tchê, futebol não é pra ti, és muito duro. Perna de pau mesmo...
Lembro que não fiquei triste, era uma realidade. Não jogo futebol e também não danço, é uma falta grave, já que consideram que quando se é negro, tem que se saber isso por consciência racial. Mas não meu caso, tenho orgulho disso.Prefiro ser inglês nos modos.
Foi nesta praça de futebol, que conheci Márcio. Na época pensei que era melhor não tê-lo conhecido. Ele era magro, franzino, tinha cara de mau e gostava de brigas. Vi ele espancando um colega na época, bateu até sair sangue.Apenas apreciei a luta. Vi o riso na sua cara. Mas estávamos todos na praça.
Logo fui avisado que o Márcio era um marginal, que deveria me cuidar dele. Entendi o aviso. Um dia ele veio falar comigo, nos apresentamos. E fomos tentar jogar futebol. Eu era muito ruim. Quando alguém é ruim assim, costumam colocar no gol. Virei goleiro e tomei muitos frangos. A cada gol que tomava, Márcio vinha furioso para cima de mim. Tenho uma péssima qualidade, sou muito paciente. Me tirar do sério não é fácil, escuto muitas coisas, relevo quase tudo que ofende, me sinto muito bem sendo assim.Gosto de absorver golpes.Tive duas oportunidades de perder o controle, confesso que não foi bom para ninguém, me machuquei e machuquei muito outras pessoas.É bom deixar demônios bem guardados.
Neste dia eu me desentendi com o Márcio, tivemos uma briga, nos machucamos bastante. Não sei se apanhei eu bati mais. Mas a partir daquele dia tudo foi diferente. Minha mãe ficou conhecendo a mãe dele, da pior maneira possível.Aquela briga rendeu.
Ali a historia de Márcio apareceu.
Eles eram pobres, mais pobres que nós. A casa de Márcio era um barraco quase caindo, o pai dele estava preso, havia matado um cara por vingança, eles tinham a caçula. Lembro que quando a vi naquele lugar imundo, enrolada em uns panos sujos, me senti muito mal, o lugar tinha um cheiro terrível, uma mistura de merda, urina e fuligem. Eles não tinham comida, o fogo era no chão, com alguns carvões em brasa. A mãe de Márcio, Dona Maria, tentava sustentar aquela família ali, sozinha, até hoje não sei o que ela fazia.
Algumas vizinhas diziam que era prostituta.Talvez fosse mesmo, não sei.Marcio era uma revolta em pessoa, por tudo.Minha mãe fez eu apertar a mão dele,eu fiz, mas lembro que nunca mais confiei nele.Tenho estas fatalidades.
Fomos todos crescendo, aprendi a evitar Márcio e as brigas. No entanto todos íamos notando que ele estava ficando cada vez pior. Sempre metido em brigas, depois vieram as drogas, os furtos. Um dia apareceu todo quebrado, haviam batido muito nele, perguntei com satisfação de vê-lo assim:
-Que houve Márcio?
-Me cagaram a pau.Mas eu vou pegar cada um deles, sozinho, vão pagar muito caro o que fizeram, são uns covardes, eram cinco contra mim.Mas eu vou fuder eles.
Havia uma raiva real nele. Teria sua vingança, mais tarde vim a saber disso. Ele era um tipo muito duro, não teve escolha, era endurecer para viver, para não passar fome. Tínhamos a mesma idade, ele não sorria nunca. Tudo que saia dele eram agressões, nunca ficava relaxado. Mantinha os meus outros colegas com medo dele. Tinha orgulho disso, de ser o mais temido entre nós.
Um dia Márcio e sua família desapareceram. A casa foi abandonada, nunca ficamos sabendo que tinha havido, para onde Márcio sua mãe e família haviam ido.Pensamos no pior. O barraco abandonado, parecia habitado por fantasmas. Fomos lá ver, nada, a casa quase caindo. Nesta época eu comecei a trabalhar, contava com quinze anos, me distanciei de tudo, de amigos de estudos. Passei a curtir musica.
A musica passou fazer uma diferença imensa em minha vida. Meu primeiro três em um, um bom aparelho de som, a coisa que mais sonhava. Gastava minha grana toda em discos de boas bandas, Rush, Pink Floyd, Led Zepellin, o melhor.
Então um dia no calçadão eu tornei a encontrar Márcio. Agora bem maior, mais forte, repleto de cicatrizes, cuidando carros na sete de setembro. Quando me viu chamou:
-E aí Fabio? Beleza hein...
-Márcio? Bá cara quanto tempo, achei até que tivesse morrido meu...
-Não morro Fábio, sobrevivo.
-E então Márcio, me diz, que aconteceu contigo cara?
-Faz tempo né? Só me fudi na vida Fábio. Desde que me mudei la da Cohab, passei a morar na rua, tava cansado de tudo. Cansei da minha mãe, da minha irmã sempre chorando.Abandonei tudo. Entrei numas de roubar, tava até me dando bem, eu quero só a grana, nada de muita violência. Só uns tapas.Mas aí os “home” me pegaram.Me trancaram,me encheram de porrada, fiquei la uns meses. Me chamavam de ladrãozinho de merda. No inicio aquilo me assustou um pouco, mas depois acostuma. Quem apanha de de cano de ferro, agüenta qualquer coisa nada vida!
-Márcio depois disso, aprendeste alguma coisa? Ficaste melhor?
-La ninguém fica melhor, agente saí pra ficar pior. Mas não sei, eu tinha em mim algo que era pra me afastar da vida difícil, mas não via pra onde ir? Sabes como é, tudo era pra dar errado, Fabio, ser honesto é muito difícil. Fico com aquela coceira puxando para o mal, as vezes eu caio. Mas ai, eu conheci a Joana, minha preta.
-Tais casado Márcio?
-É, minha preta e eu, tenho duas meninas, fico me virando pra dar de comer pra elas.Minha preta trabalhar muito, fico aqui cuidando carro, fazendo alguma correria daqui e dali. E vou levando. Falando nisso Fábio, não tens nenhum ai pra me dar uma força...
-Tenho Márcio, fica com estes dez aí...
-Grande Fábio magnata, ta bornado hein...parece te desse na vida...se tu fica rico tu não vais mais conhecer os amigo?
-Para com este papinho Márcio, eu apenas trabalho e tive um pouco de sorte, é isso, na vida é preciso ter um pouco de sorte também.
-E a esposa?
-Que esposa? Não to casado, to separado de umas quantas, mas ninguém faz muita questão de me ver. Normal.
-Cara tens que ter umas “cria”, uns ranhentinhos pra cuidar, faz bem, eu gosto de minhas filhas, e quem tocar nelas eu mato...
-Não sei Márcio, acho que cada um tem sua história, a minha não é com filhos, não é com casamento, nada disso, fico sozinho sempre.
-É to ligado, tu sempre ficava olhando a turma de longe, não se misturava...qual é ...
-Da bola não cara,ainda não me misturo,gosto de ver os outros de longe mesmo.
-Mas deixa eu te falar Fábio, agora me chamam de Nego-Mel .
-A troco?
-Só gostoso Fabio,( riu ) a minha preta que me apelidou assim, gostei combina comigo.
Nosso papo ficava cada vez mais surrealista, a vida dá voltas, parece que Nego-Mel, tentava remar para a luz, a vida é difícil, mas agora ele até sorria,será mesmo que ele encontrou o caminho?
Talvez Joana, como a Maria Lúcia, mulher de Santo Cristo na historia do Faroeste Caboclo, musica do Legião Urbana, acontecia na vida real? Nego Mel o santo cristo de Pelotas.
Dei a grana pra ele, fui embora, antes de ir embora ele me abraçou e me desejou sorte, fui embora ,e o vi de longe cuidando carros, tentando organizar a vida. Não sei o que senti, mas uma coisa era certa, estava feliz por Nego-Mel.

Luis Fabiano
A paz, é tentar remar lentamente para o melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo texto,raro com final feliz né...adorei.

MJ.

Dóris disse...

Algumas pessoas, com o passar do tempo, ficam melhores, aprendem um pouco com os erros que cometem, tentam; outras, ficam piores.
Existem muitos Nego-Mel por aí aprendendo com as adversidades da vida e nos mostrando que sempre há uma luz no final do túnel, por pior que seja a vida.
Ótimo conto.

Toda PAZ para você.
Abraço