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terça-feira, março 13, 2007

Galés

Tinha tudo para ser um passeio descontraído, leve. A tarde estava morna,
levemente varrida pelo vento norte. Em função do calor, poucas pessoas
nas ruas. De quando em quando uma ou outra alma. Mas, de súbito, a
visagem anuncia-se. Vem todo de preto, expressão fechada. Braços fortes
em razão do exercício repetitivo. Condenado a remar em uma galé. Uma
galé pequena. Ele passa por mim absolutamente concentrado no que faz.
As mãos fortes impulsionam as rodas da cadeira, atritando contra a
calçada irregular. Estatura pequena – poderia ser um anão de Velásquez – a “peça” defeituosa da sociedade, aos arrancos, vence o invisível mar que se estende a sua frente.
Por um instante senti vergonha de mim mesmo, ao mesmo tempo em que
minhas pernas se fizeram de chumbo, querendo fincar-se na calçada, quem sabe transformando-se em dois totens consagrados à preguiça de andar.
O paralítico das pernas suava abundantemente, encharcando a camisa preta.
Eu fiquei meio que parado, basbaque, diante do desconhecido cuja sudorese escorria abundantemente pelo rosto e corpo. Normalmente as galés eram
dotadas de duas velas bastardas, que não ajudavam em nada a
embarcação. Todavia, conferia a ela uma identidade, razão de existir
como objeto de navegação. A galé do nosso “prisioneiro”, não.
Possuía, tão-só, as rodas, por sinal gastas. Ele sumiu na esquina próxima, deixando pela calçada um cheiro de suor e sacrifício. Viver não é fácil, não.
Porém, algumas pessoas têm a desventura de viverem uma existência penosa.
Como o desconhecido da cadeira de rodas... Certamente alguém viverá
pior do que ele, retido a uma cama, talvez sem mover um músculo. Não; decididamente não vivemos no paraíso... Estamos, todos nós, condenados as galés...
Por madrasta sorte, muitas dessas galés se materializam... Como a do paralítico que, destemida, vencia as ondas em demanda do seu destino.

Texto extraído do blog de Manoel Magalhães, grande amigo e escritor.

http://cemporcentoliteratura.blogspot.com/

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