O coelho sem endereço
Não guarde muitas memórias,
isso pode ser uma dinamite acesa dentro de você. Tudo bem... Existem as boas
memórias, mas ainda sim não abuse delas... Porque você poderá ficar preso lá
atrás, como uma fotografia, que na verdade é apenas um piscar de olhos do
tempo.
Tenho um lema comigo: nunca
olhe para trás... Nunca mesmo. Se fiz
uma cagada... Estou consciente e não olho mais... Se foi bacana... Tudo bem, também
não olho.
As poucas pessoas que
convivem comigo, acham estranho isso. Não possuo um único cartão de namorada, aniversários
ou natal. Eu os recebo e rasgo quase imediatamente. Li a mensagem... Tá na
memoria, já era... Essa é a vida.
Sorri pra mim mesmo diante
destes pensamentos. As ruas do porto desertas em um feriado, então esperamos
Jesus ressuscitar? Ok. Não espero nada.
A minha volta enquanto olho o São Gonçalo calmo, catadores de lixo, revirando
latões, crianças sujas que talvez desconheçam o cara que vai ressuscitar no
domingo, é?
Claro, fiquei na minha, eu,
minha agenda e a caneta. Lamentei não estar com a câmera, para registrar
aquilo. Cena deprimente, sobrevivente, guerra sem armas, agentes biológicos em
jogo... Fome, dinheiro.
A mulher parecia ser a mãe
das crianças, jovem, não mais que vinte três anos, desgastada, cansada
talvez... Olhava o latão atenta, por vezes olhava pra mim. Realmente eu sou um
filho da puta...
Olhei para ela, e meus nobres pensamentos se foram pra puta
que pariu, vindos da injustiça social, se foram. A roupa dela muito puída, sem
sutiã podia-se ver os bicos rijos, do frio possivelmente... Mas o frio por
vezes pode incendiar a minha alma.
Desviei o olhar. O maldito cheiro merda do
latão me acertou o nariz. Pensei: eis o cheiro da vida. Fiquei na minha, o por
do sol iria dar o seu show... A mulher vez em quando me olhava. Agora as
crianças brincavam com o lixo... Atirando uma panqueca azeda uma a outra, a
panqueca de destruindo com o impacto, elas sorriem como somente as crianças
podem sorrir. Ironia fantástica, o azedo abre sorrisos, o imprestável torna-se
ponte.
Permaneci em silencio,
lamentei o que fere o olhar... Mas ainda sim, o sol parecia não se importar com
nada disso. Olhei a mulher novamente... Agora ela me fixou.
Sorri pra ela, e como uma
concessão silenciosa, ela veio até mim. Meus sentimentos se misturam, existe uma
linha tênue que separa o hediondo, de mim:
-O senhor me consegue um
real?
-Sim...
Abri a carteira, achei uma
nota de dois reais, dei a ela, perguntei:
-São teus filhos?
-Sim... São... um é do meu
corpo, e outro eu peguei pra criar...
-Sério? E tu consegues
isso?
-Agente luta né... Se vira
e vamos indo...
-Desculpa perguntar... Mas
tu não tens condições de criar um, porque pegou o outro?
-Não sei não senhor... A
mãe dele sumiu... Deixou a criança pra morrer sozinha... A gente não pode
deixar as “pessoa” morre né?
Aquilo havia me capturado.
-Me conta isso direito,
tu?
-Olga... sou Olga.
-Nome forte Olga. A mãe
abandou a criança?
-Sim... Era louca, chapada
e “crackera”... Nossa, não sei como Deus permitiu essa criança nasce... ela
vivia bêbada...e louca...até porrada na barriga levou...e a criança nasceu perfeita.
Por detrás de cada ser
humano, existem milhares de historias... Boas, ruins... historias, qualquer um
é absolutamente comum.
Gosto disso, gosto da vida, seja ela como for. Aquela
historia me machucava, Olga tentava dizer como se não fosse de grande relevância.
-Sei... e ai tu pegou...
-Sim... Mas quando peguei
a criança eu senti algo... Estranho sabe... Olhei para ele... ele parou de
chorar... Eu o senti, como se ele tivesse saído de mim... Coisa que não sei
explicar... Até hoje... mas ele é meu, meu filho.
Seus olhos haviam se enchido
de lagrimas, falando daquele jeito. Disfarcei as minhas. E meu pensamento
mergulhou em um tempo atrás, que fui um pai de aluguel. Tentei ser bom pai... É
o que eu digo... Lembranças são laminas afiadas.
Fiquei olhando pra ela. E
fiz uma pergunta que eu sabia a resposta... Mas...
-E no domingo como vai
ser?
Apontei para as crianças
que ainda riam, a panqueca não existia mais...
-Não sei... To tentando
juntar um dinheiro para comprar dois bombons... Um pra cada... Mas a gente
precisa comer... né...então...
Lembrei que minha pascoa
na infância, sempre foi cheia de bombons... e provavelmente a sua também que
ora esta me lendo... Dois bombons? Porra Deus.
-Eles acreditam no
coelhinho da pascoa?
-Claro que sim... não se
rouba a fantasia de ninguém...
-Tá, mas se o coelho não aparecer...
Que tu vai dizer?
-Vou dizer o que coelho se
perdeu do nosso endereço... Que ele vai procurar direitinho no mapa e depois vem...
atrasado mas vem...
-Ai tu ganhas tempo, é isso?
-Sim... ai eu consigo os
dois bombons...depois...
Você sabe quando alguém esta
dizendo a verdade... Ela era intensa, tinha cheiro intenso, e falava me olhando
nos olhos... Não queria seguir mais o assunto. As crianças chamavam Olga... E
ela foi embora, levando as crianças pela mão, e uns sacos de lixo também.
O sol se punha lentamente,
raios que fogem acendendo estrelas, estrelas que vagam entre as valetas e lixo,
testemunhas ocultas de historias não vistas. Eu também fui embora.
Luís Fabiano.