História de Melinda
A verdade é como beber veneno. Ela pode te matar para o
resto da vida. Sua felicidade e dor são o presente de sua realidade. Tenho
tomado minha dose de veneno diariamente. Deixando a realidade, o rato
existencial, ir roendo, roendo o tempo, enquanto nos encaminhamos para o céu ou
inferno? Ou simplesmente vamos todos para puta que pariu. Tudo bem, gosto de
putas, você não?
Meu trabalho permite conhecer muitas pessoas. Isso as
vezes pode ser bom. No modo geral, gosto de não ser percebido, gosto de não
estar lá...mas estando. Então conheço algumas almas e elas pensam que me
conhecem. Melhor assim, gosto da distância, a distância alimenta a nobreza, a
tua e a minha. A distante ilhas isoladas parecem paradisíacas, a distância até
o amor universal é possível. Meu telefone toca, em uma manhã destas em que nada
acontece. Você espera apenas dormir e não acordar. Olho a porra do celular, é
um número que não conheço, merda de manhã:
-Alooo...
-Oi, bom dia... por favor eu falo com o Sr Fabiano?
-Com o Sr não, mas com o Fabiano sim...
-Como?
-É sou eu...
-Pois então Sr Fabiano... eu estava precisando de uma
ajudinha, em informática, me disseram que o Sr é bom...
Era uma voz antiga, idosa certamente, eu teria que
maneirar meus modos. Gosto de mulheres ao telefone, essa queria um serviço, me
pagaria por isso. Mas naquela voz, havia um quê de melancolia. Uma
singularidade broxante nas entrelinhas do silencio. É impressionante o que se
pode perceber na voz das pessoas. Merda.
-Claro, claro Dona? ?
-Há, sim eu ou Melinda...prazer
-Prazer...
-Então seu Fabiano, quando o senhor pode vir?
Eu poderia ir naquela hora, mas não deve acostumar mal os
clientes. Eles se tornam chatos e exigentes. Querem você no sábado, no domingo,
na madrugada.
-Seguinte dona Melinda, to olhando agenda aqui...amanhã
pela manhã pode ser?
-Claro, claro seu Fabiano, eu moro na rua tal...número
tal...
-Ok Dona Melinda...amanhã no final da manhã estou ai...e
por favor, para de me chamar de Seu Fabiano ok? Eu não gosto.
-Desculpe...é que eu não conheço o senhor...
-Agora conhece, então...deixemos formalidades.
Desligo o telefone e volto a dormir. Me entrego a paz dos
mortos. Gosto de dormir, mas o foda é acordar. Puta que pariu, acordar é o pior
que pode existir. Você dorme é o nada, você dorme não há tempo, você dorme
problemas estão mortos, você esta meio morto, não há pensamento, dor ou
alivio...você flutua em um mar de nada silencio, enquanto por ai, pessoas
morrem assassinada, nascem felizes outra tantas, pessoas virando estatísticas,
dormir entregue a isso.
Dia passa, e no dia seguinte eu estou lá. Fico feliz que
é perto de minha casa, deixo o carro em casa vou a pé. Chego lá um prédio
bonito, apartamentos muito grandes. O porteiro me recebe com alguma
desconfiança. Então Melinda diz que tudo bem. Eu subo, e lá estou eu na porta
dela.
Ela abre e vejo o quanto a voz diz a verdade, o tom da
voz. Ela esta muito acabada. Muito envelhecida, fuma demais, bebe socialmente?
E tem um cachorro, puta merda, sempre tem um cachorro.
-Bom dia Seu Fabiano...
-Melinda, tira o seu por favor...
-Há, desculpe...Fabiano
-Agora sim...
Olho melhor para Melinda, tem por volta de sessenta e
cinco anos...mas bem poderia ser 85. Veste-se descuidadamente apesar da grana.
Tetas muito caídas, dentes amarelados, e um bafo que dava sentir a quilômetros,
tava como um calça de ginastica meio justa, marcando bem a calçola que estava
usando, aquelas pernas finas que não lembravam nada bom. É isso, a verdade que
a velhice é foda. Envelhecer é foda, façam propaganda de todo jeito, digam que
você pode atrasar o tempo, diga que você pode fazer plástica até no cu...mas
quem engana o tempo de verdade? A pele perde o viço, os olhos se apagam, os
desejos desaparecem a pessoas vai virando um cadáver lentamente e um anjo
assexuado. Que merda... dormir é bem melhor.
-Então Melinda... em que eu posso de ajudar?
-Assim, eu comprei um computador novo preciso que seja
ligado a internet...é isso, tu podes fazer?
-Claro, onde é?
Fomos para o escritório. Eu desembrulho o micro. Melinda
senta-se ao meu lado. Estou em silencio. Ela é ansiosa, solitária, tem
televisões ligadas por todo o Ap, o cachorro me lambe, ela fuma um cigarro
atrás do outro. Então apensar de nosso estranhamento e desconhecimento, eu a
percebia, e eu que sentia? Não sei, tento não sentir pena das pessoas. Pena é
foda, mata qualquer um. Não gostariam que sentissem de mim. Sei que Melinda tem
vontade de falar. Aquela apartamento luxuoso era quase uma espécie de caixão
gigante. Fotos de parentes para todos os lados, lembranças de tudo, de lugares,
países que foi, lembranças de uma época feliz. E agora? Vou montando o micro...
não tenho pressa:
-Melinda, casada?
-Viúva...a vinte e seis anos...
-Era um grande amor?
-Sim... o único de minha vida. O único homem que tive e
terei.
-Nossa... isso é até que a morte nos separe?
-É nisso que acredito Fabiano...
-Gosta de estar sozinha então?
-Não, detesto...mas é a minha escolha né...
-Melinda tu parece ser uma mulher inteligente...decisões
na vida sempre são por um tempo as vezes curto as vezes longo...
Ela fica me olhando. Ela parece uma bomba prestes a
explodir. Engole em seco. Tem o olhar úmido, algumas pessoas estão no limite.
-Eu era daquele homem Fabiano? Tu entendes? Quando ele
morreu, parte de mim morreu também...nos éramos felizes, até o acidente.
Que eu diria? Fiquei olhando, que vida seria aquela? Um
ser que amamos, deve ao partir nos matar junto? Será que isso ta certo? É assim
que se ama? Se ama até a destruição plena de si? Ou simplesmente nós não
sabemos amar. Eu acho que não sabemos.
-Desculpe Melinda.
-Não foi nada não...essa é a minha vida.
-e o que mais é a tua vida?
-Juntar dinheiro para quando eu estiver invalida...não
depender de ninguém... eu mesma vou pro asilo...
-Pensar no futuro?
-É...eu vivo pelo futuro.
-Não, tu não vives.
Terminei de montar o micro. Eu agora sentir um pouco de
raiva daquela mulher, que poderia estar vivendo muito melhor, mas se deixou
sepultar pelo marido. Eu já perdi pessoas importantes, que amava muito. Meu pai
uma tremenda perda. Mas a vida não parou... é preciso viver desesperadamente, é
preciso ter o que contar, é preciso ter experiências e sobretudo estava vivo a
cada respiração que você dá. Depois a raiva amenizou um pouco... pensei em
convida-la a tomar um rum. A bebida talvez lhe desse um alivio. Tudo que se
precisa é um alivio. Mas o veneno que serve pra mim...não serve pra humanidade.
Olhei melhor para Melinda. Pensei: quem poderia ajuda-la? Existira uma ajuda?
Acho que não. Escolhemos nossos cárceres...nós temos a
chave, ninguém vai te dar a chave.
Terminei o serviço. Ela ainda chorava silenciosamente,
não queria me contaminar com aquela energia. Cobrei e sai sem dizer mais. Não
queria dar uma de salvador da pátria, eu sou só um técnico.
Luís Fabiano.
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