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quarta-feira, janeiro 15, 2014

História de Melinda



História de Melinda

A verdade é como beber veneno. Ela pode te matar para o resto da vida. Sua felicidade e dor são o presente de sua realidade. Tenho tomado minha dose de veneno diariamente. Deixando a realidade, o rato existencial, ir roendo, roendo o tempo, enquanto nos encaminhamos para o céu ou inferno? Ou simplesmente vamos todos para puta que pariu. Tudo bem, gosto de putas, você não?

Meu trabalho permite conhecer muitas pessoas. Isso as vezes pode ser bom. No modo geral, gosto de não ser percebido, gosto de não estar lá...mas estando. Então conheço algumas almas e elas pensam que me conhecem. Melhor assim, gosto da distância, a distância alimenta a nobreza, a tua e a minha. A distante ilhas isoladas parecem paradisíacas, a distância até o amor universal é possível. Meu telefone toca, em uma manhã destas em que nada acontece. Você espera apenas dormir e não acordar. Olho a porra do celular, é um número que não conheço, merda de manhã:

-Alooo...
-Oi, bom dia... por favor eu falo com o Sr Fabiano?
-Com o Sr não, mas com o Fabiano sim...
-Como?
-É sou eu...
-Pois então Sr Fabiano... eu estava precisando de uma ajudinha, em informática, me disseram que o Sr é bom...

Era uma voz antiga, idosa certamente, eu teria que maneirar meus modos. Gosto de mulheres ao telefone, essa queria um serviço, me pagaria por isso. Mas naquela voz, havia um quê de melancolia. Uma singularidade broxante nas entrelinhas do silencio. É impressionante o que se pode perceber na voz das pessoas. Merda.

-Claro, claro Dona? ?
-Há, sim eu ou Melinda...prazer
-Prazer...
-Então seu Fabiano, quando o senhor pode vir?

Eu poderia ir naquela hora, mas não deve acostumar mal os clientes. Eles se tornam chatos e exigentes. Querem você no sábado, no domingo, na madrugada.

-Seguinte dona Melinda, to olhando agenda aqui...amanhã pela manhã pode ser?
-Claro, claro seu Fabiano, eu moro na rua tal...número tal...
-Ok Dona Melinda...amanhã no final da manhã estou ai...e por favor, para de me chamar de Seu Fabiano ok? Eu não gosto.
-Desculpe...é que eu não conheço o senhor...
-Agora conhece, então...deixemos formalidades.

Desligo o telefone e volto a dormir. Me entrego a paz dos mortos. Gosto de dormir, mas o foda é acordar. Puta que pariu, acordar é o pior que pode existir. Você dorme é o nada, você dorme não há tempo, você dorme problemas estão mortos, você esta meio morto, não há pensamento, dor ou alivio...você flutua em um mar de nada silencio, enquanto por ai, pessoas morrem assassinada, nascem felizes outra tantas, pessoas virando estatísticas, dormir entregue a isso.

Dia passa, e no dia seguinte eu estou lá. Fico feliz que é perto de minha casa, deixo o carro em casa vou a pé. Chego lá um prédio bonito, apartamentos muito grandes. O porteiro me recebe com alguma desconfiança. Então Melinda diz que tudo bem. Eu subo, e lá estou eu na porta dela.
Ela abre e vejo o quanto a voz diz a verdade, o tom da voz. Ela esta muito acabada. Muito envelhecida, fuma demais, bebe socialmente? E tem um cachorro, puta merda, sempre tem um cachorro.

-Bom dia Seu Fabiano...
-Melinda, tira o seu por favor...
-Há, desculpe...Fabiano
-Agora sim...

Olho melhor para Melinda, tem por volta de sessenta e cinco anos...mas bem poderia ser 85. Veste-se descuidadamente apesar da grana. Tetas muito caídas, dentes amarelados, e um bafo que dava sentir a quilômetros, tava como um calça de ginastica meio justa, marcando bem a calçola que estava usando, aquelas pernas finas que não lembravam nada bom. É isso, a verdade que a velhice é foda. Envelhecer é foda, façam propaganda de todo jeito, digam que você pode atrasar o tempo, diga que você pode fazer plástica até no cu...mas quem engana o tempo de verdade? A pele perde o viço, os olhos se apagam, os desejos desaparecem a pessoas vai virando um cadáver lentamente e um anjo assexuado. Que merda... dormir é bem melhor.

-Então Melinda... em que eu posso de ajudar?
-Assim, eu comprei um computador novo preciso que seja ligado a internet...é isso, tu podes fazer?
-Claro, onde é?

Fomos para o escritório. Eu desembrulho o micro. Melinda senta-se ao meu lado. Estou em silencio. Ela é ansiosa, solitária, tem televisões ligadas por todo o Ap, o cachorro me lambe, ela fuma um cigarro atrás do outro. Então apensar de nosso estranhamento e desconhecimento, eu a percebia, e eu que sentia? Não sei, tento não sentir pena das pessoas. Pena é foda, mata qualquer um. Não gostariam que sentissem de mim. Sei que Melinda tem vontade de falar. Aquela apartamento luxuoso era quase uma espécie de caixão gigante. Fotos de parentes para todos os lados, lembranças de tudo, de lugares, países que foi, lembranças de uma época feliz. E agora? Vou montando o micro... não tenho pressa:

-Melinda, casada?
-Viúva...a vinte e seis anos...
-Era um grande amor?
-Sim... o único de minha vida. O único homem que tive e terei.
-Nossa... isso é até que a morte nos separe?
-É nisso que acredito Fabiano...
-Gosta de estar sozinha então?
-Não, detesto...mas é a minha escolha né...
-Melinda tu parece ser uma mulher inteligente...decisões na vida sempre são por um tempo as vezes curto as vezes longo...

Ela fica me olhando. Ela parece uma bomba prestes a explodir. Engole em seco. Tem o olhar úmido, algumas pessoas estão no limite.

-Eu era daquele homem Fabiano? Tu entendes? Quando ele morreu, parte de mim morreu também...nos éramos felizes, até o acidente.

Que eu diria? Fiquei olhando, que vida seria aquela? Um ser que amamos, deve ao partir nos matar junto? Será que isso ta certo? É assim que se ama? Se ama até a destruição plena de si? Ou simplesmente nós não sabemos amar. Eu acho que não sabemos.

-Desculpe Melinda.
-Não foi nada não...essa é a minha vida.
-e o que mais é a tua vida?
-Juntar dinheiro para quando eu estiver invalida...não depender de ninguém... eu mesma vou pro asilo...
-Pensar no futuro?
-É...eu vivo pelo futuro.
-Não, tu não vives.

Terminei de montar o micro. Eu agora sentir um pouco de raiva daquela mulher, que poderia estar vivendo muito melhor, mas se deixou sepultar pelo marido. Eu já perdi pessoas importantes, que amava muito. Meu pai uma tremenda perda. Mas a vida não parou... é preciso viver desesperadamente, é preciso ter o que contar, é preciso ter experiências e sobretudo estava vivo a cada respiração que você dá. Depois a raiva amenizou um pouco... pensei em convida-la a tomar um rum. A bebida talvez lhe desse um alivio. Tudo que se precisa é um alivio. Mas o veneno que serve pra mim...não serve pra humanidade. Olhei melhor para Melinda. Pensei: quem poderia ajuda-la? Existira uma ajuda?

Acho que não. Escolhemos nossos cárceres...nós temos a chave, ninguém vai te dar a chave.
Terminei o serviço. Ela ainda chorava silenciosamente, não queria me contaminar com aquela energia. Cobrei e sai sem dizer mais. Não queria dar uma de salvador da pátria, eu sou só um técnico.

Luís Fabiano.




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