A Vidente
Não posso dizer que sou um homem de muita fé. Normalmente
acreditamos em qualquer coisa quando queremos nos escapar do pior. Ai rola os
maiores atos de fé possível. Somos volúveis e na maior parte do tempo, e Deus
não passa de um negociante. Ficamos bonzinhos, ele nos dá uma força, somos maus
ele vira as costas para nós. Bem simples.
Quando o assunto é doença, ai “viramos” santos... Mas no
fundo isso quer dizer o seguinte: porra me tira dessa, não deixa eu me fuder! Proteja
o meu cu...
Passada a crise, voltamos a ser os mesmos filhos da puta
de sempre... E a fé escoa pelo ralo... Basta tudo estar bem. Tudo bem, sem que
percebamos nossa essência é cínica. Tudo bem, apenas seja tranquilo com esta
verdade, sem conflitos.
Isso me faz voltar no tempo, numa época das mais fudidas
da minha vida. Envolvido em péssimo casamento, com um trabalho que pagava uma
miséria. Naturalmente eu era tão comportado neste tempo, que hoje me olhando no
espelho, percebo o quanto eu sofria de uma inocência imbecil. Ok, todos temos o
direito de ser idiotas.
Havia em mim uma complacência para com tudo, eu me
deixava ser servil porque em tal sacrifício “Deus” ficaria agradado, e logo ele
não me ferraria mais, como até ali havia feito. Lembro que eu tinha um brilho
nos olhos, como uma emoção constante e serena, um consolo eterno para tudo.
Mas não funcionou.
Ao contrário, quanto mais eu me tornava complacente com
tudo, mais as coisas se tornavam piores. Minha mulher uma espécie de torturadora
profissional do Dops, fazia um jogo psicológico de dominação, controlando até
os meus peidos, ou a quantidade de esperma que saia de meu pau quando nos
transamos, quando ela digamos, estava afim.
Tinha em minha mente, que casar deveria ser pra sempre, e
era meu dever zelar para que isso se mantivesse. Mas a vida dia a dia, o morar
junto dia a dia, as cobranças pesadas que cada um se coloca. Um detalhe, eu não
cobrava absolutamente nada dela. Nunca cobrei nada de ninguém. Não era santo,
mas tentava ser legal, muito legal. Aquele mau humor eterno dela me machucava.
Por vezes no trabalho eu lembrava da mulher meiga e
tranquila que era fora um dia... E agora se tornava uma carrasca apertando um
laço de forca em meu pescoço. Porra, por quê?
No meu trabalho o chefe era um sacana. Fazia mutretas no
caixa, e sempre dizia que a firma ia mal. Eu era auxiliar de mecânico. Ele
atrasava o pagamento dos funcionários, mas ia viajar para Europa, e de lá dizia
que não tinha dinheiro... Que estava muito ocupado. Naturalmente fui entendo porque
os caras que trabalhavam lá, mais velhos, roubavam o que podiam... Davam uma de
justiça pessoal. Não gostava disso. Eles apenas me diziam:
-Bico calado hein... Se não vai sobrar pra ti...
-Tudo bem, tudo de boa, não vi nada.
-Bom guri... É isso aí.
Sentia a minha consciência em paz parcial. Porque nada
disso parecia certo. Eu chegava em casa, dependo de como Anita estivesse, a
noite seria um pouco pior. Eu sorria, mas me sentia estuprado, violentado. Por
assim dizer, Anita foi matando um sentimento puro que tive. Definitivamente,
aquele jeito de ser não estava dando certo. Era preciso mudar, mas o que? Não
havia ninguém para orientar. Um dia eu havia recebido a grana, e fui fazer um
lanche sozinho em antiga lancheira, que existia nas proximidades do calçadão. Pedi
o lanche mais barato e um refri. Puta merda aquilo foi um bom momento. Fiquei
aguardando o lanche... Meus pensamentos angustiados, deram uma aliviada na
expectativa da comida, com os meus erros ou acertos. Afinal, que mais a
Divindade queria de mim?
Até hoje não sei, de onde ela surgiu. Então uma velha
bastante enrugada, cabelos ralos e brancos, dente de ouro e um chale muito puído,
falando um portunhol barato, sentou-se ao meu lado:
-Hombre... Deixa eu vê tua mão... Dá mão aqui...
-Hã?
-Dá-me tu mão hombre... Preciso ver...
Automaticamente dei a mão, não sei por que apenas dei a
mão... Sabe-se lá que ela poderia dizer... Eu não acreditava nisso... Ela
agarrou minha mão, e arregalou os olhos e me disse:
-Filho tu esta tão infeliz... Tu estas pressionado de
todos os lados... Em casa e no “trabajo”, é ou não é?
Fiquei surpreso com a precisão. Respondi automaticamente
que sim. Ela seguiu:
-Filho tu vais mudar em breve, tu precisas mudar, “tu”
natureza não é assim... Tu és um animal acomodado... E estas deixando esta fera
dentro de ti morrer... E se nuestra fera morre, nós morremos também, a fera
coração, a fera desejo a fera inquieta, a fera justiça... Oh padre nuestro,
abre las puertas deste “hijo”...
Começou a pronunciar um monte de coisas que desconheço,
numa língua que até hoje não sei, por fim, assoprou na palma da mão... E a
fechou forte. Fiquei olhando pra ela, que estava de olhos fechados. Por fim
abriu e disse:
-Me consegue alguma coisa filho?
-Tenho pouco dinheiro...
-Umas moedas apenas para obter a graça...
Tinha no bolso três reais. Dei pra ela. Ela pegou a grana
e antes de sair virou para trás e disse:
-Filho cuidado com o tigre... Se usted soltar ele de vez...
vai ser um grande estrago pra todos...
O lanche veio, mas eu havia perdido a fome. Algo havia
acontecido ali... Não sei exatamente o que. Sentia um calor no peito, como se
ele fosse explodir. Meu pensamento parecia ter sido desperto de um longo
sono... E naquele instante eu me sentia forte... Disposto e de certa forma
senti meus caninos crescerem.
Comi o lanche, pedi uma cerveja e depois outra, e aí sim fui
pra casa.
Quando entrei na porta, Anita já foi logo desafiando:
-Fabiano, que hora é esse de chegar? Que isso agora,
cheirando a álcool?
Não respondi nada, fiquei olhando ela nos olhos (o
contrario do que fazia), em um silencio profundo...
-Fala alguma coisa Fabiano... Diz, vai... Vai dizendo
onde tu estavas até essa hora? Que cara estranha é essa?
O silencio era de uma serpente enrodilhada, pronta para
dar o bote. Era preciso dosar a força. Nunca fui violento, mesmo pra dizer as
piores coisas, é preciso uma dose serena de frieza. Aprendi isso naquela noite também.
-Anita... Não te interessa onde estive ou o que fiz... Fica
tranquila... ta tudo em paz.
-Isso é jeito de falar comigo? Tu me respeita cara... Hein...
tu me deves respeito viu...
-Anita, fica tranquila, eu não te devo nada... E acho
melhor tu ficar mais calma...
Devo confessar que olhando para Anita, daquela forma, ela
me pareceu tão frágil em todos os sentidos. Frágil fisicamente, frágil psicologicamente,
suscetível a tudo como a maioria das pessoas que conheço. Fracas e prontas para
perder, porque se deixam derrotar por sí mesmas.
-Fabiano tu estas louco? Mas onde se viu... Tu és meu
marido... És meu...e eu mando... Entendeu?
-Seguinte Anita: mais uma vez que falares assim, eu serei
teu ex-marido agora... Entendeu?
Ela riu, tinha um excesso de confiança em seu domínio
sobre mim. Outro erro do ser humano, a vida é uma surpresa amigos, e, portanto
tudo é possível, tudo existe e nada existe.
-Para com isso cara... Tu não vais a lugar algum... Há, há,
há... Tu dependes de mim...
Aquele calor no peito ainda predominava, a força da raiva
aliada ao mergulho
da paz, resultava em uma fria lamina apontada, pronta para
atacar ou acariciar.
-OK... Então tem uma boa noite Anita...
Peguei umas coisas e sai novamente. Estava disposto a
beber um pouco mais a ficar na rua, e pela primeira vez, começar a minha vida
infiel com qualquer vagabunda ordinária.
Lembro até hoje... De Anita vociferando na porta e eu me afastando lentamente:
-Vai... Pode ir... eu sei que tu vais voltar...
Realmente eu voltei, para pegar as minhas coisas, e sair
sem dizer adeus, entre as lagrimas de desespero dela, o que não me comoveu em nada.
Ela não era elegante para chorar agora.
O tigre afinal havia despertado, mas ele não é ruim, ele
tem toda a disposição do mundo para o bem e para o mal, embora prefira ficar em
paz, o que, por muitas vezes é difícil, talvez isso seja uma fragilidade minha,
mas quem não tem.
Luís Fabiano.