A benção da merda
A impossibilidade de espantar-nos com o mundo, nos conduz a uma espécie de morte informal, uma calcificação emocional, a rocha removida à duras penas, da fria e brutal indiferença galgada dia após dias. Esforço de morte, o feto gigante auto asfixiando-se, para chegar desfalecido a porta da vagina.
Bradar aos ventos do norte a vida, é a ironia das ironias. Tento escapar disso, o enclausurado observando através das grades, as estrelas fulgurantes e doces, a luz baça e fantástica transpassando a alma, erguendo ânimos, a mão que se estende através das grades, com quem diz: dá-me uma estrela pra mim, uma estrela em minhas mãos, luz, por favor, luz...
Fiquei assim estático por um breve instante, movido pelo pensamento errante, por emoções sutis, mas com dentes afiados que me cravavam por dentro. O saco de lixo pendia em minhas mãos, papeis cagados, absorventes e restos de tudo que nosso corpo expele, nossos dejetos porque a alma não faz isso também?
O cheiro trazia o encantamento das furnas de merda, bueiros entupidos o cheiro de todos os cheiros péssimos, misturado aquilo, um frio tão intenso quanto o arrependimento, e aquele cara no latão do lixo? Que fazia ali?
Assustei-me com ele. Mesmo sendo vinte e três horas e três minutos. Eu ia levar o lixo da casa e atravessaria a rua depois, para comprar o liquido precioso, cerveja, uma sede desértica me invadia. Quando joguei o lixo para dentro do latão (estes latões em forma de casa que estão espalhados pela cidade) o morador lá de dentro vocifera:
-Não coloca lixo na minha casa cara, sai daqui é meu lar...
O ser humano ás vezes me surpreende. É raro, muito raro. Talvez estes humanos que expostos a intempéries to tempo, meus supostos irmãos, sem tem onde pousar a cabeça tranquilamente, transformando lixo em aprisco, em busca de fragmentos de paz:
-Opa, desculpe ai cara... É que aí é o lixo então eu...
-Não, hoje é a minha casa... e não joga lixo nela...se não...
Não tenho o perfil assustado de um coelho frágil, mas também não tem o perfil de brigar, alias acho uma estupidez mórbida. Sinto-me mais feliz e tranquilo sendo um bom saco de pancadas. Aprendi isso a duras penas, quando certa vez a muito, soltei minha disposição sombria para a porrada... não gostei do que fiz ou do que senti. O adversário no chão, sangrando feito um porco, meus olhos congestos de sangue, uma respiração animal, a raiva sem precedentes e uma profunda disposição de matar o inimigo... eu o mataria se não tivessem me segurado, o mataria com raiva e prazer, por um motivo besta qualquer, pelo orgulho incandescido, fazendo brilhar chamas em uma noite de azar e mulheres perdidas.
Quando voltei a mim, disse a mim mesmo que não gostaria mais de sentir isso. Talvez minha crueldade tenha refinando-se, talvez tenha me tornando pior, na densa frieza de emoções que não se revoltam ou afligem, que não se sente ofendido, que não se sente derrotado, de um orgulho que se dilui como um sorvete ao sol. Gosto mais deste Fabiano, um cara enfurnado em seu mundo, vivendo o melhor que a vida pode oferecer, sem fazer escolhas de nada, guiado por mãos invisíveis e feliz. Um rio que se conduz sozinho.
Aquele mendigo da lixeira lembrava-me, há muito tempo. A disposição malévola e inocente. Olhei para ele com a minha frieza viciada, sorri o sorriso dos idiotas e coloquei o lixo no chão. Ele sentiu-se mais confiante imaginando meu medo, entrou para dentro latão novamente.
Deixei o lixo ali do lado de fora, um saquinho com minha merda, meus restos de comida, o nariz assoado dezenas de vezes.
Voltei meu trajeto, fui buscar o elixir que unifica os homens, com certeza não era o amor, mas os benditos vícios. Pelo vicio se conhece um homem, suas virtudes falam apenas de seus sonhos e devaneios, os vícios das suas realidades.
Comprei a cerveja, decidi comprar uma a mais. Lembrei-me das merdas que Jesus disse: quem te bater a uma face, oferece a outra também? Sorri pra mim mesmo, que porra é essa? Eu deveria dar era uma garrafada nele.
Já um desafio suportar o outro humano ele sendo razoável, imaginemos perdoar-lhe todos os pecados? É amor demais, amor em jorros, amor universal, amor impossível... impossível senti-lo, logo perda de tempo.
Tornei a atravessar a rua, e o latão estava fechando novamente, bati na “porta”e o mendigo mal humorado disse: tem gente filho da puta...
Disse eu:
-Abre essa porra, é um amigo teu... e trouxe um presente.
Como uma criança cheia de vontades, vi que se remexeu dentro do latão e em dois segundos abria a borda para ver quem era. Estendi-lhe a garrafa de cerveja sorrido, ele a pega:
-Amigo, amigo... que bom que você veio... quer entrar ?
-Não amigo, to apenas de passagem pra deixar o presente ai... na próxima vez eu entro
Pensei comigo, se entrava para dentro do latão... mas aquela merda fedia pra caralho, achei melhor não.
-Mas que bom amigo, obrigado...obrigado...
-Não há de que. Dorme em paz...hoje.
E fui me afastando lentamente, meu coração estava tranquilo. Quando estava quase chegando ao portão do prédio, ele grita de lá, um grito feliz de satisfação:
-O senhor mandou um anjo... o senhor é um anjo...
E desapareceu dentro do latão. Fiquei parado um instante, pensando: eu não sou anjo, acho que tenho mais haver com Outro, mas as vezes as coisas funcionam, e em algum lugar dentro ou fora de nós brilha... acho que senti algo brilhar.
Luís Fabiano.
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