Bigodes de Samanta
Uma de minhas primeiras namoradas era meio machorra. Calma-lá, não se pode usar estes termos deselegantes e chulos, elas não gostam, diz uma amiga minha. Mas naquele tempo era assim que se chamavam, estas mulheres que gostam de outras mulheres e algo masculinizadas.
Eu tinha por volta de trezes ou quatorze anos, meu pai havia me liberado para ir ao bailinho do Centro Comunitário de onde morávamos. Aquilo foi uma das coisas mais importantes da minha vida, a festa começava a tardinha e ai no máximo até as 22 horas.
Aquilo era uma novidade pra mim, todos estavam lá, dançavam , havia musica lenta para dançar com as meninas, era bonito e inocente. Eu me sentia muito estranho lá, eu era o perdedor da turma. Não sabia dançar, como não sei até hoje, tenho dois pés esquerdos e muita timidez, quando interpreto a mim mesmo, além do mais eu não fazia nenhum sucesso com as meninas. Não era esportista, não tinha fama de brigão, não gostava de futebol e estava preocupado em tentar ler alguma coisa.
Nesta época não havia bebidas para menores (hoje não há também, mas qualquer menor pode comprar a vontade, porque não existe fiscalização suficiente para quase nada neste país) de forma que eu era quase um santo.
Tentei tirar algumas meninas para dançar, mesmo sem saber como, eu iria arriscar, afinal era pega-las pela cintura, trazer junto ao corpo e ficar embalando como o pendulo de um relógio, lentamente, de um lado para outro, dizer algo no ouvido. Foi assim que aprendi, com este singelo manual do meu amigo Silvio. Não funcionou, ninguém queria dançar comigo.
Era a minha tão conhecida rejeição, sempre fez parte da minha vida. Desde a pré-escola, onde todos me consideravam, sujo, feio e ranheto. Tudo bem, ranhento e feio era verdade, mas sujo não. Creio que hoje sou mais sujo do que já fui, não tenho preguiça de tomar banho, mas ainda faço.
Quando a festa estava por acabar, eu a vi. Estava no canto e ninguém a havia tirando para dançar, uma solitária, abandonada como eu. Era Samanta. Os meninos tinham medo dela porque ela era, furiosa e batia em alguns se preciso fosse. Mas agora ali estava, calma em um vestido pelos joelhos, parecia meio triste. Fui até ela com coragem, lembro bem do seu semblante. Ela tinha mais bigode que eu. Convidei-a para dançar, ela aceitou.
Não preciso dizer que todos ficaram olhando, admirados comigo e com Samanta, éramos a aberração. Creio que aquilo foi a salvação de nossos egos. Sua voz grave, me falando ao ouvido como um pato rouco, a musica de Century Lover Why de fundo, tudo aquilo parecia mágico. Naquele instante eu senti algo que viria a me acompanhar pelo resto da vida.
A sensação do macho, com uma mulher nos braços, isso por assim dizer se tornou meu narcótico, mesmo Samanta não sendo tão mulher, como o futuro viria a confirmar mais visceralmente, aquele momento suscitava sua passiva vontade de estar com alguém, de não sentir a solidão da rejeição e discriminação velada, algo que talvez vá além do mero gênero.
Aquilo foi muito bom, acabamos ficando juntos outras vezes, erámos o refugo, o lixo, os vermes e neste aspecto nos entendemos bem, posso dizer até bem mesmo. Samanta era digamos muito hot. Diga-se de passagem, que esta é uma peculiaridade das “machorrinhas”. Depois vim a ter uma outra, e comprovei, são ótimas.
Perdi-me de Samanta, a vida mudou, eu mudei de lá, e de alguma forma o tempo enterrou nosso juvenil encontro. Algo ficou, tudo em nossa vida tem um significado subjacente, aquilo trouxe minha consciência a marginalidade solitária, que a todos envolve.
Creio que todos fazemos esforço demasiados para ser aceito por tudo e todos, mesmo que isso esteja vinculado a negar-se, a aparentar o que não se é, e nos mergulhe-se em uma dose de cinismo elaborado por medo, ansiedade e uma ignorância monstruosa que a tudo deforma. Não estamos dispostos a abrir mão de nossos perfeitos ideais, e ver o humano que reside em alguns de nós. O mesmo humano desesperado de sempre, que sente fome, chora ,caga e sangra, quando tudo mais deixa de ser mera aparência.
Estranhamente só entendemos isso, quando o silencio rasga nossa alma fazendo-nos olhar para nós mesmos, sem adornos, máscaras e roupas. É apenas você e sua alma, ninguém mais, a realidade mais dura de todas, o voo solitário do falcão, a lança aguda que transpassa o peito, o sorriso da criança.
Luís Fabiano.
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