A espera
Finda um tempo, com desejos silenciosos aglutinando quase
desespero no peito. Aqueles eram tempos bons, tento não ser nostálgico, pois
nostalgia é de uma inutilidade barbara. Nada para o tempo, nada espera, e somos
consumidos pelo tempo meio que rapidamente. Tu piscas os olhos...e já era...vinte
anos.
Mas todo o caso vou lembrar com vocês. Tudo tranquilo se
não quiseres ler, pode ir fazer outra coisa.
Cada ser humano carrega suas merdas... eu carrego as
minhas também...e você certamente também. Talvez se diga: era mais uma buceta? Mais
duas bucetas? Mais três? Mas que merda...nem tudo acaba por ser bucetas. Eu sei
disso. Não é assim...
Eu conheci Fátima a muito tempo. Professora, casada e
amante da arte. E tudo era tão puro que chegava causar asco. Mas lembro com
ternura.
Fatima me deu aulas de teatro... e como sói iria
acontecer aos que amam arte...acabamos nos envolvendo. O marido dela... era um
extremo esquerda aliado ao partido... vivia na luta extrema, “contra os burgueses”...
e Fatima era um céu aberto... respirando sonhos, vivendo uma novela mexicana de
péssimo gosto com aquele cara.
Aconteceu o que não deveria acontecer. Nos envolvemos...
eu era casado e ela também. O crime une, o crime cria a cumplicidade, o crime
compensa. Acho que comecei a ser fio da navalha ali. Minha esposa era opaca
perto de Fátima, e não vou falar dela. Tudo que ela sabia era, manter tudo no
lugar, tudo hermético e tão certinho... aquilo me irritava profundamente. Mas
coisas do casamento. O casamento é feito para você aprender a aturar as merdas
da outra pessoa em nome do amor. Definitivamente amor não é isso. Não posso
acreditar que seja. E se for...eu prefiro morrer na solidão.
O esposo de Fatima...era duro, respostas ásperas e fodas rápidas.
Ele não conhecia a própria mulher. E você será que conhece bem a sua? Sabe os
segredos que ela esconde...e sobretudo, você a faz feliz? Pois é... aquele cara
tinha uma mulher fantástica... e tudo que ele queria que ela fosse extrema de
sua esquerda...mas ela era arte.
Um dia perguntei a ela porque havia casado com aquele
cara? Ela sorriu... e disse que tudo foi um engano... sentia-se carente...
então Mário apareceu... que tinha tanta convicção, tantas certezas e ela não
tinha nenhuma...ele parecia ser sensível e casamento rápido. Merda. Depois o
lobo mostra os dentes e garras...ele era político ao extremo... vivia a luta
revolucionaria encerrando em si um monte de convicções que o tempo se encaminha
de desfazer.
Aos que aprendem a ver. Muitos ainda não aprenderam a
ver. Um abismo entre eles foi criado. Então o casamento passou a ser a forma, o
molde social de apresentação bem sucedida da sociedade. Ual.
Ali estávamos nós, juntos. Passei a leva-la para casa a
noite caminhávamos devagar, as vezes de mãos, olhávamos para os lados e nos
beijamos na rua perto da meia noite. E aquilo era tão bom...a paixão é uma
coisa boa... não havia planos, demos o foda-se para os nossos parceiros. O
coração é foda. Poderíamos mudar o jogo? Simplesmente acabar com nossas vidas
certinhas...e depois ficar junto em nome do amor? E por um instante eu disse:
-Fatima... vamos mandar tudo a merda...tudo, minha
esposa, teu marido...a merda com eles...e vamos ficar juntos...e depois a gente
vê...
Olho seus olhos. Olhos castanhos, brilhantes e um cabelo
negro que descia abaixo do ombros, sorria com doçura e encantamento:
-Fabiano... eu não posso... tenho meu filho...ele precisa
de mim... não é bem assim, não tenho como mudar tudo assim...
Como que pressentindo algo em mim, deixei ficar assim.
Não queria força-la a nada. Não se força ninguém a nada. Se vive tranquilo se possível.
Eu queria o que não palpável em Fatima, sem promessas, sem tratos... viver
apenas viver o mais intensamente possível.
Silenciamos o assunto.
Nos dias que se seguiram estávamos bem. Mas como algo que
não pertence a este mundo... algo que com garras ferozes nos atinge, com se
toda felicidade tivesse que ter um fim... porque? É assim mesmo?
Mario o marido de Fátima, havia conseguido uma transferência
para o topo do país. La no Maranhão. Havia uma revolução no Maranhão? Mas que
porra era essa? Uma revolução maranhense?
Naquele dia, ela chega a aula de teatro e tem um
semblante carregado de uma tristeza inominável. Eu prestava atenção nela, ela
não me encarava os olhos. Um peso silencioso tornava sua alma um chumbo sem
brilho. Fiquei ansioso... queria saber o que havia? Durante a aula Fatima
estava ausente...e um momento chorou sorrindo. Por fim, duas horas depois a
aula termina. Ficamos a sós.
-Fatima... o que foi? O que há?
Ela sorri sem graça, e ainda sim parecia tão linda...tão
leve, como uma dor que não se quer causar...uma dor sem drama... uma dor se música.
Meu coração esta opresso, um rasgo de algo não entendido... por fim ela fala:
-Fabiano... eu to indo embora. O Mário foi transferido
para o Maranhão... e ele já arrumou tudo...e vamos para lá em quinze dias... tu
entendeu?
Aquilo significava o fim. Nunca lidei muito bem com
finais. Como um frio que vem do intimo aquilo me atingiu violentamente. Porque?
Que porra era essa? Porque tinha que ser assim? Hein? Era uma punição divina? É
isso? Assim se acaba algo... que era bom, belo e leve? Mundo de merda... uma
boca afiada de um tubarão consumindo a alma.
Nos abraçamos e começamos a chorar... iriamos nos
perder... um perder para sempre? Sem dúvidas.
Me sentia perdido. A vida tornou-se algo horrível... a
vida sem Fatima não seria nunca mais a mesma. Ficamos abraçados, chorando
silenciosamente, as palavras eram tolices que nada poderiam amenizar.
Aquele dia eu a levei para casa... poucas foram as
palavras. Entrei em sua casa e transamos apaixonadamente, não voltei para casa
aquela noite. Bem, os dias que se sucederam foram como uma despedida lenta. Os
moveis de sua casa começaram a sumir lentamente, como se desmaterializando, a
mesa, as cadeiras, os guarda roupas a louça da cozinha... Fatima sumindo
devagar. Os quinze dias foram os mais terríveis que vivi... pensei coisas terríveis...
que talvez fosse melhor estarmos mortos a viver isso.
O quanto vale o amor?
Ela não poderia se livrar de tudo? Mandar o emprego, o
marido as favas e viver comigo? Eu perguntei a ela isso... ainda tinha os vínculos
da família...uma família que tem muita grana. Mas não... não era possível. Eu
amaria mais que ela? Ou eu era mais irresponsável que ela? Eu sempre fui meio
porra loca.
Por fim os quinze dias se esgotaram rápidos,
vertiginosos. No dia que ela ia embora, eu fui até a casa dela, uma casa vazia.
Ela abre a porta, me beija... tentamos prometer que vamos comunicar... que
vamos tentar mesmo a distância ficar juntos.
Então chega a hora. Ela abre a porta nos olhamos, nos
beijamos e saio caminhando pela Barão de Sta. Tecla, quando chego a esquina
viro para trás, ela ainda esta a porta... e chora copiosamente...eu também,
ergo a mão...e aquele adeus foi a última vez que a vi. Nunca mais.
O tempo passou, o tempo que parece consumir muitas coisas...mas
aquela lembrança ficou. Eu a procurei como pude depois, mas ela parecia ter
desaparecido deste mundo.
Pessoas desaparecem...todos os dias.
A verdade acaba sem acabar... hoje eu não sei se Fatima
vive, se morreu... se foi abduzida, ela simplesmente sumiu e os rastros que
ainda existem são de minhas memórias. As vezes passo pela Barão de Santa
Tecla...e casa que ela morou ainda esta lá... como um tumulo fechado para
alugar...e só.
Extraído do Livro: O beijo Sujo
Autor Luís Fabiano.
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