Pedro Lixo
O dia se veste de noite. Você em sua casa, eu andando por
ai, a cata do inusitado. Sou movido por isso, pelo inesperado, pelo que grita a
alma, nas ruas de asfalto congelado. O Brasil ganhou o jogo da Espanha, com
arte e beleza. Me sinto um idiota feliz, me sinto bêbado, me sinto marchando
lentamente na madrugada.
Eu sou a comemoração solitária, e o sorriso no quarto escuro. Tudo bem, não fique apreensivo... Todos temos estes momentos. Estamos vivos.
Nesta noite a cidade foi mergulhando num silencio. O frio
da madrugada traz um brilho maior as estrelas, cães de rua procuram abrigos,
creio que todos procuramos aprisco. O motor quente do Kadett rasga as ruas
lentamente, um coração de metal batendo em ronco acalentador.
Nada esta acontecendo na cidade, o domingo de madrugada é ressaca e tédio antecipado, da segunda, todos aqueles problemas de sempre. O animal volta para a jaula, bovinamente e tenta ser feliz assim, viva!
É, ao menos sorria. Agora nas ruas vazias e tenho vontade de ir pra casa, talvez um ultimo drink antes de dormir, para ser catapultado direto para os braços do diabo. É fatal, sempre que penso no diabo... Sempre me lembro das mulheres. Vou chegando em casa. Então vejo no contêiner de lixo, que fica em frente ao meu prédio, alguém joga coisas lá de dentro para fora... Numa cena curiosa, era como se o contêiner estivesse passando mal do estomago e estivesse vomitando, como eu ou você.
Legal... a ordem inversa de tudo me fascina. Estaciono o carro, desço e me encosto do no mesmo para ficar admirando a obra de arte. Lixo se espalha pelo chão, pensei: puta merda... Os caras que recolhem lixo vão ficar putos... Bem todos temos problemas.
O personagem seguia sua tarefa de limpar o contêiner .. sabe-se lá pra que. Mas eu não sairia dali até descobrir. Gosto de ver gente de verdade de vez em quando. Os sobreviventes me fascinam... A coisa é mais pesada para eles.
Então surge lá dentro, uma alma enlameada e que parecia
sorrir. Então ele me encara nos olhos, e fica algo inquieto. Percebo a situação:
-Ei amigo... Fica tranquilo... to de boa...apenas olhando...nada mais...relaxa.
-Tu é da policia? Ou da limpeza urbana?
Me admirei da colocação.
-Nem uma coisa e nem outra. Sou um bêbado chegando em casa... feliz...
O semblante dele relaxou.
-Opa... que beleza então...e tu tens ai alguma bebida? Bêbado feliz...
-Não... ainda... Mas desculpa perguntar ai... Que tais
fazendo?
Ele sorriu dentro daquilo que era possível, então apontou um saco enrolado...
-To fazendo a minha cama senhor... a gente precisa dormir bem...pra aguentar...
-É um colchão?
-Claro... durmo bem...amanha to novo.
O colchão enrolado daquela forma era um grito ensurdecedor... Cães procuram abrigos, homens correm para onde podem... Dentro de mim algo se moveu como se fosse uma guilhotina... Eu entraria em minha casa... A cama estaria pronta... Minha vida normal. Tentei desviar da culpa. O cara me chamou atenção, me aproximei.
-Ta certo... E ai o que tu bebes ?
-Bebo socialmente... Mas há esta hora... teria de ser um
destilado...né ?
-Tudo bem.
Atravessei a rua em direção ao posto, em frente meu prédio. Acho La uma garrafa de vodca... tiro perfeito. Volto, ele agora desenrolava o colchão... que parecia estar em ordem. Abro a vodca... Ele sorri como uma criança diante do ovo de páscoa.
Dou o primeiro gole a seco... Desce rasgando... Estendo a garrafa para ele:
-E então amigo... Qual é o teu nome?
-Pedro... Sou o Pedro Lixo.
-Sei... lixo por causa da convivência com o lixo?
-É... sabe sou meio um rato humano... As pessoas me olham
com nojo...
-Sei... Algumas me olham com nojo também... Mas Pedro... Qual
é a tua historia? Como tu foi parar aqui?
-Tem certeza que quer saber?
-Pedro... com toda certeza...
-Fiz péssimas escolhas... E aqui estou...
-Sempre foi pobre?
-Não, tive uma empresa... Tive grana... e carro...vivia
bem...
-Sério? Porra... E onde foi que o teu sonho se
transformou em um pesadelo?
-Tu confias nas pessoas?
-Muito poucas... Costumo dizer que confiança é mais
importante que amor...
Falei a frase displicentemente... E por algum motivo... isso provocou uma lagrima em seus olhos. Merda, somos frágeis as vezes, um colocação abre comportas... Rasga o peito mas que uma navalha.
-Desculpe ai Pedro...
-Tudo bem... É saudade, mas passa. É que confiei nas pessoas...
confiei demais, confiei em uma mulher... E as coisas não terminaram bem... Ela
simplesmente desapareceu... Levando consigo meu dinheiro... E meu filho... Cara,
porque ela fez isso? Tu podes me dizer?
-Nem tudo tem resposta Pedro... E ainda que tenha, as
vezes pouco diz...
-De um dia pra outro... Eu não tinha mais nada...então
fui descobrindo as coisas erradas... A empresa já não ia bem a muito... fui
vendendo as coisas... E as oportunidades não foram aparecendo... Creio que Deus
me esqueceu agora...
Nos olhamos... E sua colocação vinha do fundo, não era revolta... era lamento. E nestes instantes, você se sente um nada. Você não tem como fazer algo... Mãos atadas diante do drama... vodca e um papo e nada mais?
-Não sei Pedro, acho que as vezes ele esta muito ocupado... E algo passa...
-Como é o teu nome?
-Fabiano...
-Sabe Fabiano, não sinto raiva... Queria apenas que tudo
fosse diferente...
-Eu também Pedro.
Pedro Lixo...
Pedro deita a voz...
Deseja calar saudades... Afogar desesperos
Homem rato... Fugindo dos venenos...
Toca vazia...
A vida armada com uma ratoeira...
Equilibrando... O colchão, a alma, a falta...
Pedro Lixo...
Cospe seu alento...
E as lagrimas misturam-se ao cheiro nauseabundo do
imprestável...
Podridão purificada...
Asas pesadas, tentando planar...
É como um lutador com desejos de vitória...
O touro tentando atacar uma vez mais...
Revolta ausente...
Pedro lixo... carinhos do álcool...
Nem filhos, mulher ou dinheiro...
Ele ainda sonha...
-Pedro, tais feliz hoje? O Brasil venceu...
-Tinha jogo?
-É, decisão contra a Espanha... Ganhamos... Com arte...
-Que bom... Que bom cara...
Me sinto cansado... E por um breve instante, a vida mostra a sua face mais profunda... Hoje nem mulheres, nem putaria, nem gemidos doentios...não...nada.
-Tchau Pedro...valeu.
-Boa noite Fabiano... E não te preocupa... Amanha esse
lixo todo vai estar de volta no contêiner... Eu junto, eu sempre junto tudo...
Me afastei.
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