Último Olhar
A vida me transcorre sem apuros. Como o próprio sangue
fluindo em minhas veias lentamente, mesclando-se entre minha sanidade e o álcool.
Assim me deixo levar. Demora-se muito tempo para aprender isso. Teoricamente
todos podemos aprender. O grande porem é saber fazer calar as vozes incontidas,
que como cães furiosos no peito, ficam dizendo pra você: faça isso, faça
aquilo, seja alguém, ataque, tenha importância... não perca tempo, não perca,
com pressa vai...
Como uma meditação diária, simples, vivendo dia a dia,
como se fosse o ultimo, fico assim. Como um viciado que se vangloria de naquele
dia não ter bebido ou se drogado ou estuprado... Uma vitória anônima e inexpressiva,
um guerreiro solitário, tentando vencer a si mesmo, sem aplausos em teatro
vazio.
Felizmente não sou viciado em nada, eu acho. Talvez nada seja
forte demais de dizer, bucetas me são benvindas, uma boa buceta é capaz de me
conduzir a um amor profundo, mas mesmo neste aspecto, o tempo parece que estar
me lapidando. Seja lá o que for lapidar neste âmbito...
Mas ao que parece, a vida não é pra ser vivida assim. Foda-se.
Nada disso funciona como um filtro para as dores, para os desacordos e
loucuras. Isso você precisa ir aprendendo como cada ser humano que você se
depara. Tento evitar muitos deles... É mais saudável assim.
Depois de inúmeros casamentos, você aprende a não dar
muita importância para nada. Muitas pessoas a nossa volta são feitas de plástico
mesmo, elas não vão dar falta de você, elas não se importam, isso é natural. A
grande questão é se você consegue ficar em paz com isso? É disso que falo, de
tempo. Perdemos um tempo imenso tentando acertar quando apenas tudo que se
precisa é estar aberto, e deixar a natureza fazer o resto.
Eu estava olhando pela janela do quinto andar. Enfiado em
pensamentos longínquos, e minha alma descansava. A passividade do dia me invade,
por veze sou frágil com dentes afiados. Sou um cão de guarda agora, com cães
por dentro.
Inescapavelmente lembro-me do ultimo cachorro que tive.
Um policial que feroz, negro e amarelo, que respeitava muito meu pai. Ele foi
meu sonho realizado, pois desde muito criança quis ter um cão chamado Cyborg.
Cyborg foi me dado, e cresceu como crescem as coisas boas, altivo e feliz.
Era um cão fantástico, passeávamos, ele se tornou muito
forte, mas nunca atacou ninguém ele era do bem. Dei todo o carinho para ele... E
ele correspondeu. Chegava da escola, e lá estava ele feliz latindo alto e forte.
Então saiamos para caminhar, todos os dias. É como eu digo... As vezes as
coisas não são para serem assim...
Com o tempo veio a minha irmã. O espaço da casa era muito
pequeno, ela um bebe e Cyborg um dia soltou-se da coleira... E foi rapidamente em
direção a ela... E ele a lambeu, surpreendendo a todos que estavam assustados.
O amor tem aspectos estranhos. Cyborg havia ficando grande demais para o espaço
que tínhamos.
Cagava por todo lado, minha mãe e pai trabalhavam o dia
inteiro e tempo e dinheiro fazia falta... A coisa foi se tornando mais difícil,
e ainda mesmo sem ocorrência negativa alguma, tinham medo que Cyborg atacasse a
criança ou alguém.
Eu não concordava com isso. Mas a opinião de criança não
é importante, a minha não foi. Então um dia meu pai veio a conversar comigo:
-Filho... O Cyborg terá de ir embora...
Meu pai era um cara que não tinha indiretas. Falava diretamente
o que era para ser dito, seja bom ou ruim... gosto disso. Detesto floreios.
Acho que herdei isso dele.
-Mas por que pai? Eu gosto do Cyborg, ele gosta de mim...
somos amigos...
-Não temos condições mais de cuidar dele... E tem mais a
tua irmãzinha também... ele é muito grande e feroz... Temos medo que sem querer
ele brinque ou a ataque... Bem um incidente assim seria horrível... pra todo
mundo...
Nada disso fazia sentindo pra mim. Não gostava daquela
conversa. Mas meus argumentos foram vãos, eles já haviam decidido, e tudo que me
sobravam eram as lágrimas. Eu perderia meu amigo não para a morte, mas em
função da vida.
Aquela noite foi difícil. Quando cheguei a porta que dava
para o pátio. Cyborg me olha e não late, um silencio como uma lamina cortando o
espaço, ele ficou sentado me olhando, parecia entender oque estava se passando.
Será? Não contive minhas lagrimas, não conseguia olhara para Cyborg, não
conseguia olhar para meu pai, e pelo que recordo lembro que foi os primeiros
pensamentos de morte que tive. A ideia do suicídio deve estar presente na vida,
como uma prece ou anestésico para a dor mais profunda. Com o tempo fui
pensamento menos nisso.
Então amanheceu, era sábado e um amigo de meu pai viria levar
Cyborg, para uma casa cujo quintal era imenso, mais ou menos uma quadra. Ainda
lembro de Paulo e sua charrete grande, chegando em nossa casa. Ele sorria não
sei de que. Fomos todos para frente da casa, eu levei Cyborg na coleira, ele
aceitou passivamente, eu não, chorava sem parar. Ele subiu na charrete e
Paulo
que disse, vendo a minha tristeza:
-Fabiano... vai lá ver ele sempre... Ele continua sendo
teu, e minha casa vai tá aberta, ele é o teu amigo... E vou cuidar dele pra ti,
como um amigo que ajuda outro.
Todas as palavras ditas eram vãs, soavam vazias como um
sino que não toca, tentei me acalmar. Então Paulo sobe na charrete, eu, meu pai
e minha mãe estávamos ali... A charrete começa
afastar-se lentamente, no trote do cavalo... E o olhar de Cyborg estava
em mim...e eu o olhava fixamente. Meus pais entraram para dentro de casa, e eu
fiquei ali sozinho... Fiquei até não mais conseguir vê-los na distancia, uma dor fisgando lentamente.
Lembrei-me disso, mas hoje a dor não é mais a mesma. Mas
sei que depois disso não fui mais o mesmo, me sentia roubado. Qualquer
sofrimento te modifica, você fica com uma breve cicatriz. Eu senti saudade de
Cyborg e não sinto saudade de pessoas que viveram muito próximas a mim da mesma
forma.
Visitei Cyborg algumas vezes, e depois nos perdemos... O
tempo trabalhou, nele e em mim, ele veio a morrer forte, como uma espécie de
insanidade mental... Sei que Paulo fez o
que pode. Foi isso.
Por vezes temos sede de saudade
E fome da alma
Como o encontro que jamais ocorrerá
O tempo como ondas
Leva e apenas leva
Mas as marcas que ficam traçadas
Na superfície da alma
Ficam... E assim devem ser.
ps: vou tentar localizar o Paulo para que ele conte a
historia de própria voz. Se ele ainda estiver vivo eu gravarei um vídeo e vou
querer saber o final de Cyborg e como a coisa se deu.
Luís Fabiano.
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