O herói e as zonas de inquietação
A condição não era das melhores. Terrível presenciar
crimes, e ficar ao mesmo tempo, perplexo com o que um ser humano é capaz de
fazer. Não tenho duvidas que cada um de nos, em algum momento, é capaz de
coisas complicadas... De se complicar,
seja lá o motivo que nos inspire... A questão é essa, na hora as coisas
parecerão sempre justificáveis.
Eu estava vindo e parei naquele muro encardido para dar uma
mijada. Então a mulher surge com um pacote, pacote imóvel, flácido e o joga na
lixeira. Pensei, lixo é lixo. Mas como uma impressão desagradável que me move,
aquilo me pareceu estranho.
Porque ela se esgueirava? Como se tivesse se escondendo?
Uma atitude suspeita. Sou assim, desconfiado da própria sombra, foda-se, não
consigo ficar desligado, tudo é esperado, tudo é possível, e a qualquer momento
uma merda vai acontecer... Porra Fabiano...
A mulher se afasta rapidamente, depois de despejar o
lixo. Tenho em minhas mãos uma garrafa de rum pela metade. Quando não mais a
vejo, vou até o lixo. Abro o latão e não creio no que vejo... Uma criança?
Morta? Viva? Meu peito dispara como um raio, e naquele momento, minha frieza se
desfez... A criança estava suja, com o cheiro típico de nascimento, sangue,
liquido amniótico e lixo, ainda tinha o cordão umbilical... Infelizmente parecia não respirar.
O desespero me apanha... Eu a tiro dali com muito
cuidado... Ela não respirava, meu olhar mergulha no céu, como um pedido
silencioso da agonia... Misto de carinho pela criança, indignação com o
Criador..., porra porque cara? Hein? Lembrei que trabalhei no hospital e sabia
os primeiro socorros, no caso de uma parada cardíaca... Dobrei o cordão
umbilical como pude... pois saia um liquido dali... E massageei o pequeno
coração do pequeno... depois colei minha boca em sua boca e soprei ar... Fiz a
operação algumas vezes... Quando estava no estertor de uma derrota... A criança
respira... Ela respirou?
Ela respirou... ela respirou... Ta viva...
E mesmo sem nunca tê-la a visto, eu a abraço como um próprio
filho que não tive, ela tosse um pouquinho... E seus olhinhos se abrem para
este mundo...
Puxa, desejei que ela tivesse visto coisa melhor que a mim... me
acho estranho, tocado e feliz... Ela me olha bem nos olhos, e seus olhinhos são
verdes e brilham... Tiro minha camiseta e a enrolo e a levo para o hospital... Afinal
deu tudo certo. As vezes é assim.
Na emergência do hospital, confusão, policia, agitação
eles a levam... Mas ela esta bem... Mas e agora? Eu a perdi? Qual será seu
nome? Não a verei mais? Ou nossas almas estarão para sempre ligadas pelo elo da
vida e morte?
Quando acordei... Meu coração estava apertado, acordei
chorando como uma criança... Por um breve instante que pareceu tão real, pude
fazer algo bom para alguém... E como tudo depois, as coisas se perdem...
Gostei de ter acordado, e ao mesmo tempo não gostei.
Estava de volta a realidade. Madrugada de sábado imerso em solidão. Abro a
janela, as ruas estão calmas alguns carros vagabundos passam... Ambulâncias gritam,
estou inquieto, não sei se saio, não sei bebo, e todas estas coisas parecem
tentações pálidas depois daquele sonho.
Fui até a cozinha e bebi da garrafa de rum pelo bico
mesmo, puro e sem gelo. Precisava acalmar o coração, que agora recordava
memorias duras, perdas e mais perdas... e mais perdas. Quantas vezes é preciso
perder, para que o Criador fique satisfeito?
Realmente estava me sentindo mal, numa zona de emoções
dilacerantes cuja possibilidade de solução é remota. Onde eu enfiaria minhas
mãos, para arrancar aquela sensação? Meu coração batia forte, numa espécie de
taquicardia frenética. A merda é saber que não há uma única pessoa neste mundo
capaz de resolver isso... Uma queda de braço entre as vísceras, o espirito e o
coração. Poético mais medonho. Tente.
O melhor a fazer é anestesiar tudo, o mais rápido possível.
Dediquei-me a beber o restante da garrafa, é muito melhor uma ressaca, do que
fiados destroçados da alma em um liquidificador...
Bebi, e o turbilhão pareceu se acalmar. Desejei sonhar
novamente... Há uma região atemporal no
espaço que nós todos podemos ser felizes, aonde a simples quietude nos conduz a
graça, onde os desejos se calam, onde conflitos encontram descanso, e você se
move sem esbarrar em nada... sem choques.
Quando acordei pela manha, a dor de cabeça muito forte,
mas estava em paz... Então ouvi um choro de criança...
Luís Fabiano.
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