*Navalhadas de um Mundo Deformado
O Espelho
Quando Joana olhou-se no espelho, era um fantasma de si mesma. Não sorria, não tinha porque sorrir, acudiam-lhe lembranças pesadas não de um passado a eras, mas coisas recentes, feridas sulcadas que ardiam no fogo da auto piedade, que se impunha em inócuo sacrifício. A maldita perna mais curta, era um estigma mortal, coxeava portanto, e nada poderia ser mas humilhante. As pernas do mundo.
Aquele espelho refletia tudo isso. Gostaria de não ser assim, de ser normal entre os normais, e usar uma saia mais curta, ter pernas lindas de modelo. Mas não seria possível.
Beco sem saída, de luzes apagadas onde as asas estão partidas. A maldita minhoca queria cavar um buraco infiltrar-se nas frestas do solo e desaparecer...
Na paz vacilante
Da inquietude tenebrosa
Onde sombras crescentes são corvos sem estrelas
Asas que se agitam
Anjos não se arriscam
Entregamos o leme de nosso destino errante
Tendo por chegada as tempestades
Tenra caricia da natureza
Afiando nossas essências
Onde a alma canta em sua crisálida de luz
Mas na mão que serra nossos olhos
A frágil têmpora que não enxerga a si mesma
Regurgitando próprias feridas
Todas em um mundo turvo
Turvado por nossa ignorância
Mãos de algema
Coração encarcerado
O brilho pálido de nossas intenções
Brincam com nossos devaneios estelares
Ascendendo esperanças
Nos braços seguros do amanha
Eu estava deitado meio nu, entregue a lassidão, enquanto Joana olhava-se no espelho. Nunca dei atenção que era manca, que quanto estava tendo seus orgasmos, a perna mais curta tremia convulsivamente, como se tivesse vida própria. Nada disso era importante, afinal isso não é importante... Eu estava ali e disse a ela:
-Esqueça ela, Joana você tem asas...
Mas aquilo era um mau momento, não ouvia minha voz, apenas aquela merda de perna fudida. Insisti um pouco, mas nada, estava off. Fiquei um pouco irritado, eu a achava um espécime raro.
Escolho meus espécimes por características marcantes, jamais olho qualidades, prefiro familiarizar-me com os defeitos, vícios e manias, a verdade da vida onde me sinto a vontade. Mas defeitos da alma, o corpo pra mim nunca fez, faz ou fará diferença... realmente eu fodo além de tudo isso...
As correntes do pensamento
Eram vergalhões com asas de beija-flor
Quando a impossibilidade
Ventre de ânsias imediatas
Útero estéril da fatalidade
Brincando de entre os medos e volúpias
Fome que vence lentamente
Quando não aceitamos
A trajetória normal dos meteoros
Negação da liberdade
Eclipsando a doce serena fonte
Onde tornamos passos firmes
Da beleza singela
Levantei da cama, meio trôpego e tropecei em algo que machucou meu joelho. Por momentos fiquei eu meio coxo, como fragmentos enclausurados da vida ordinária, onde a similitude encontra guarida, nas dobras de nossas particularidades. Asas abertas que não voam, pernas que não funcionam, tristeza que não passa...
Quando cheguei até ela, a estatua defronte ao espelho, abracei-a por trás, a beijei com ternura demasiada, e dos recônditos de um Fabiano maldito, algo pulsa, desejei que nada ferisse sua alma, que suas dores batessem em retirada, como estrelas cadentes ao reverso, riscando céus para longe dela, que as grandes se abrissem e os pirilampos brilhassem nos campos em flor.
Luís Fabiano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário