Não tenho a menor duvida que a ressaca moral é infinitamente superior ao vinho barato. Tal como o vinho, deixa um gosto ácido na boca. Reconheço que tenho pouquíssimos escrúpulos. Os poucos que sobraram, defendo com unhas e dentes, se houver necessidade. Comigo mesmo, trabalho em uma zona de indiferença a quase tudo. Entendo o tipicamente humano.
Porem, depois de tudo que ela narrou tudo, ficou difícil eu toca-la novamente. A historia não era nova. Seguia os padrões que acompanham a tragédia humana. Por favor não me entendam mal, não é moralismo barato. Mas tudo tem uma maneira de ser feito.
Por vezes o ato não grandioso de uma alma, tem por intenção proteger-se da dor. Porem quando tal ato é feito com uma indiferença mecânica, a dimensão humana foi abandonada, esquecida, relevada. E nada pior que um anti-humano.
Sentados naquele bar vagabundo, com uma cerveja meio choca e cigarros chegando ao fim, a escoria humana desfilava com classe. Com seu nariz fino de tanto cheirar pó, seus dedos queimados das pontas de baseado, e copos vazios como seus corações. Nada disso é chocante. Comum demais. São os heróis, tentando sobreviver, antes de afogar-se em um balde de merda.
Consuelo estava alta como sempre. Nos conhecemos a anos, pela noite, por ai. Temos aquele envolvimento de amizade e sexo eventual, que costuma ser perfeito. Para pessoas que não buscam graves envolvimentos. Tivemos nossos grandes momentos, de loucura e tesão. Mas agora ela entrara por um via difícil de acompanha-la. Vivia alucinada demais. Isso talvez justificasse muita coisa.
A bem da verdade, drogados perdem o interesse por sexo. Não transamos mais. Depois que ela começou a pegar mais pesado, ficamos na amizade. Como mulher não era mais atraente. Vinha destruindo o corpo dia a dia. Nem tentei entender porque. Consuelo tinha motivos de sobra, e todas as justificativas. A vida inteira ,foi uma merda, e agora era final de carreira. Literalmente.
Em uma de nossas boas conversas, perguntei se gostaria de ser salva de tudo aquilo?
-Claro que não. Nem tenho pressa que acabe. Não sou vitima de nada, eu escolhi isso, eu gosto disso e quero permanecer nisso.
-Você sabe que as pessoas não acreditam em chapados, não é ?
-Fodam-se as pessoas. Quero apenas que me deixem em paz, cada um com suas drogas. Me deixem com as minhas.
Sorri para ela. Eram declarações fortes. Ela era uma mulher, mas tinha muito culhão. Foi exatamente isso que nos aproximou. Gosto de gente com personalidade. Ela poderia ser tudo, menos mosca morta.
Um dia ambos meio altos, nos aproximamos demais, sentindo a excitação um do outro, como animais no cio, cheirando a prazer. Realmente foi bom. Tudo ficou na amizade sempre. Eventualmente, vamos a algum bar para conversar. Ela conta suas tragédias, me alimenta com seu pior. Eu fico ali como um vampiro de dentes afiados. Me delicio. Tudo que venho observando, é sua decadência controlada. Como um dia de sol, que vai apagando-se sem perspectiva de amanhecer. Gosto de Consuelo.
Então veio a prostituição. Era grana que ela usava para comprar, anfetaminas, cocaína e mais algum aditivo. Só de ver sua quantidade de drogas, ficava pensando como aquele corpo aguentava tanto? Ela era uma “super mulher”. Era claro que começou a descuidar-se perigosamente. Transava com tudo e com todos. Pegava a grana e saia feliz como Alice no País das Maravilhas, uma maravilha psicodélica.
E ai chegamos ao ponto. Veio a primeira gravidez indesejada, de algum ilustre desconhecido. Ou desconhecida. A esta altura, não fazia diferença se ela houvesse transando com um ET. Como consequência, vieram os abortos a granel. Os primeiros três eu entendi. O restante não sei.
A noite de Consuelo ficava mais escura, seu coração mais duro, e uma ponta de crueldade aparecia ali disfarçada. Não julgo nada, não tenho nem moral e nem cacife para isso.
Naquele bar ordinário. Ela levantou foi até o banheiro, sorria tranquilamente. Depois de uns dez minutos. Pensei que estivesse cagando. Ela volta meio pálida. Sorri para ela, que houve? Pelo jeito você tava ruim do estomago. Que você comeu?
Ela acende o último cigarro. Dá uma longa tragada e com um sorriso sarcástico dispara:
-Nada disso, fui matar mais um. Tava fazendo um tempo conversando contigo esperando a coisa fazer efeito. Por favor, mais uma cerveja aqui...
Fiquei em silencio. Acho que pela primeira vez me senti tocado com algo assim. Tentei entende-la, tentei abstrair, tentei achar normal. Não havia conseguido engolir bem. Como um vômito prestes a explodir. Queria ir embora dali o mais rápido possível. Talvez eu estivesse amolecendo. Ou a idade começasse a fazer diferença neste mar de loucuras.
Embora goste de Consuelo, preciso ficar sem vê-la por um tempo. Não sei quanto tempo vai durar, talvez muito. Sou assim mesmo, um dia levanto e mando tudo a puta que pariu. Então começo tudo de novo, como um círculo sem fim.
Até a próxima ressaca.
Luís Fabiano.
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